sexta-feira, 20 de novembro de 2009

A tempestade e os catecúmenos

A escuridão da noite escondeu as nuvens carregadas e o grande calor do dia nos fez mais gratos pelas gotas da chuva que chegava. Chegou com relâmpagos, trovões e muito vento.

As gotas esparsas ajuntaram-se e os relâmpagos rasgavam o céu bem acima e iluminavam rápido alguns detalhes que a luz artificial não dava conta de mostrar.

O vento atravessava as casas, janela a janela, batia as portas com força e sacudia as árvores como que acordando-as da modorra da tarde abafada e quente.

A tempestade formara-se sobre nossas cabeças e a gratidão pelo refrigério com que a noite era inaugurada começou a dar lugar aos sustos provocados pelos estalos rasgados dos raios seguidos do ribombar dos trovões rolando à distância.

De repente as lâmpadas piscaram. Piscaram mais vezes e se escurecem. A memória substituiu então a visão, e a conversa, entrecortada por estalos mais fortes, continuou no escuro.

Se, em uma casa às antigas, se buscaria - com a dificuldade do pouco uso - uma vela, em uma conversa com adolescentes a solução vem rápida e surpreendente: celulares acesos.

Mais acesa do que os celulares estava a fé dos jovens catecúmenos que era examinada pelos anciãos nos quais ela já fizera morada há muito tempo e que, responsáveis por mantê-la acesa, verificavam a existência dela naqueles que desejavam professá-la diante do povo de Deus.

Nunca, em meus muitos anos de pastorado, vi uma reunião de Conselho tão significativa.

A tempestade varria as ruas lá fora, enquanto adolescentes e anciãos conversavam calmamente.

A escuridão da noite era rasgada por raios e a escuridão das dúvidas era iluminada pela segurança de respostas solidificadas na fé de quem, tão cedo na vida, já tem o verdadeiro norte no coração.

O vento que sacudia as árvores era imitado pelas perguntas que sacudiam as convicções. E, como nas árvores só ficavam as folhas verdes, os corações adolescentes eram também varridos das convicções mortas pela Palavra mais escaldante do que o sol que matara as folhas.

Lá fora a tempestade que limpava os ramos que já não estavam tão ligados aos seus troncos. Aqui dentro, à sombra da Casa consagrada ao Senhor, outra tempestade testava os novos rebentos que desabrochavam para a vida.

Como colocar tudo em palavras? Não sou escritor tão destro, nem observador tão perspicaz. Mas, do mesmo modo que nunca me esquecerei dos rostos sorridentes - sorrisos que não eram vistos do outro lado da sala escura, mas eram sentidos na doçura das palavras e no frescor da fé que o hálito de cada sílaba trazia brilhando mais intensamente do que os relâmpagos - também não esquecerei da fé que neles era representada.

Que Deus as conserve brilhantes, mesmo debaixo das piores tempestades que assolam noites mais escuras e mais tempestuosas: as noites da vida.

sábado, 14 de novembro de 2009

Abel continua falando

Já chamei sua atenção para o paradoxo de Abel: Não há registro de qualquer palavra que ele tenha dito, entretanto o escritor da Carta aos Hebreus disse que ele ainda fala. Quem nos diz que ele ainda fala é também quem nos diz que a fé é o veículo através do qual ouvimos sua voz.

Porém Deus também ouviu sua voz: “A voz do sangue de teu irmão clama da terra a mim” (Gn 4.10).

Note: não é Abel que fala e sim algo dele. A nós, segundo o escritor da Carta aos Hebreus, sua fé. A Deus, segundo o próprio Deus, seu sangue.

Aqui é necessário fazer uma observação: a palavra sangue, no original hebraico, está no plural. Alguns acham que, para os Hebreus, a palavra sangue só tinha a forma plural (como, em português, lápis, férias, núpcias, óculos, etc.). Porém, quando Deus proíbe o uso do sangue como alimento (Gn 9.4) a forma usada é a singular.

Então, quais são os “sangues” de Abel que, da terra, clamavam ao Senhor? Pluralizar a palavra seria apenas uma figura de linguagem ou significaria algo que nosso idioma não nos permite ver?

Costumamos dizer - corretamente - que a morte entrou na terra após a queda. Dizemos também - erroneamente - que a primeira morte foi a de Abel e antes dela não se sabia o que era morrer. Há até quem diga que Caim não tinha a menor idéia do que aconteceria a seu irmão.

Porém a Bíblia é clara: a morte de Abel foi a primeira de um ser humano. A morte já havia sido introduzida no solo sagrado do jardim: o próprio Deus matou os animais dos quais tirou peles para cobrir a nudez de nossos primeiros pais.

Ao sacrificar um cordeiro Abel comete a segunda morte. E, fora do jardim, sangue é novamente derramado sobre a terra.

Se o sangue das vítimas que forneceram a Deus suas peles, já era um tipo do sangue de nosso Senhor derramado em favor dos seus, podemos entender melhor por que a palavra sangue está no plural: O sangue do próprio Abel, derramado por seu irmão e assassino e o sangue do sacrifício oferecido por Abel, clamavam ao Senhor.

Nenhum de nós, que tem a Bíblia como sua regra de fé, duvida de que o sangue derramado sobre a terra clama ao Senhor por justiça.

Os próprios glorificados, que aguardam o Dia do Senhor, testificam isso: “Clamaram em grande voz, dizendo: Até quando, ó Soberano Senhor, santo e verdadeiro, não julgas, nem vingas o nosso sangue dos que habitam sobre a terra?” (Ap 6.10).

Nosso Senhor e mestre é muito mais incisivo: “Serpentes, raça de víboras! Como escapareis da condenação do inferno? Por isso, eis que eu vos envio profetas, sábios e escribas. A uns matareis e crucificareis; a outros açoitareis nas vossas sinagogas e perseguireis de cidade em cidade; para que sobre vós recaia todo o sangue justo derramado sobre a terra, desde o sangue do justo Abel até ao sangue de Zacarias, filho de Baraquias, a quem matastes entre o santuário e o altar” (Mt 23.33-35).

Então fica clara a afirmação: “Mas tendes chegado a [...] Jesus, o Mediador da nova aliança, e ao sangue da aspersão que fala coisas superiores ao que fala o próprio Abel.” (Hb 12.22-24).

O sangue de Abel clama por justiça ao “juiz de toda a terra” e é tipo do sangue de todos os que foram martirizados por sua fé.

O sangue derramado por Abel clama, até hoje, testificando qual é o verdadeiro significado de uma fé obediente.

O Sangue de nosso Senhor, tipificado por ambos, fala de coisas superiores: perdão para os ‘cains’, que insistem em cultuar a Deus com o produto de uma terra corrompida pelo pecado, e, que, quando percebem que Deus não se agrada de suas obras, matam seus irmãos. Irmãos que, pela fé, cultuam obedientemente ao Senhor.

sábado, 7 de novembro de 2009

Depois de morto ainda fala

Na terça-feira passada a frase “mesmo depois de morto ainda fala”, prendeu minha atenção. Nem me lembro mais quem a disse, nem do que falávamos, mas ela ficou muito tempo martelando minha cabeça por um motivo simples: Não há registro de qualquer fala de Abel.

Minha primeira providência foi certificar-me de que a frase refere-se mesmo a Abel. Está.

Depois reli a história do primeiro assassinato e tirei a dúvida: ao contrário de Caim, seu irmão e assassino, que questiona o próprio Deus, Abel não fala palavra alguma.

Como então: “depois de morto ainda fala”?

Será que esse “ainda” foi acrescentado por nossos tradutores? Não. Não foi. Ele está livre de qualquer dúvida textual em todas as versões gregas que possuo.

Ainda fala! Como? Se nunca falou. Ou melhor: Como ainda fala, se não temos registro de qualquer palavra dita por ele?

Seu ato ainda fala!

Mas, veja bem: o único ato de Abel registrado foi um ato de adoração a Deus: Pela fé ele apresentou a Deus um culto mais excelente do que o culto de seu irmão. O qual, enciumado por Deus ter preferido o culto de Abel, o matou.

Observe que este é um dos poucos lugares em que Deus faz distinção baseado na qualidade da coisa em si. Geralmente, pela sua grande misericórdia, ele aceita nossas oferendas sem olhar para a qualidade delas. Em outras palavras: Aqui, a base para a aceitação do culto não está na misericórdia de Deus, mas na qualidade do culto.

A fé de Abel - aquela que o permite falar a nós hoje - o levou a oferecer a Deus um cordeiro. Caim tentou compensar sua falta de fé oferecendo a Deus um culto muito mais trabalhoso: teve, no mínimo, o trabalho de plantar, de colher e de transportar. Mas isso não comoveu a Deus.

A fé de Abel lhe mostrou que não poderia aproximar-se de Deus como seus pais o fizeram. O próprio Deus já cometera as primeiras mortes no jardim: os animais dos quais tirou peles. E será o próprio Deus que matará o verdadeiro cordeiro.

A fé de Abel lhe mostrou que desagradaria ao Criador se desconsiderasse seu ato.

Isso é contra o que popularmente se diz: “se for feito com fé Deus aceita qualquer coisa”. A assertiva correta é: “se for feito com fé, não faremos qualquer coisa!”

A falta de fé de Caim o fez repetir o gesto errado de seus pais, com o agravo de, inventando algo novo, oferecer os vegetais no altar. Note que Deus já os recusara como simples vestes.

A falte de fé de Caim levou-lhe a preferir a imaginação e a criatividade como substitutos para a obediência.

A falta de fé de Caim o levou a odiar a obediência na pessoa do obediente matando seu irmão. Do mesmo modo que os novos adoradores rotulam de mortos os que cultuam em espírito e em verdade.

Mas o texto destaca Abel. Seu ato e sua fé. Sem palavras, ainda nos fala: Deus não aceita cultos - por mais elaborados que sejam - inventados pela imaginação e criatividade dos ‘cains’, mas deleita-se quando, reconhecendo a Cristo, o verdadeiro Cordeiro de Deus, lhe cultuamos em fé.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Os perigos de se ver Deus face a face

Os mais velhos se lembram das aulas de Escola Dominical sobre Deus rejeitar o pedido de Moisés para vê-lo face a face, e alguns se lembram de um hino que usa como analogia nossa impossibilidade de olhar diretamente para o sol para explicar por que só podemos ver a Deus através das figuras que ele mesmo escolheu para se fazer conhecido.

No artigo passado mostrei como algumas correntes dentro do evangelicalismo brasileiro estimulam essa impossibilidade e adicionam toques eróticos a esse encontro da alma com Deus. Hoje espero deixar claro a impossibilidade do pecador, mesmo redimido, ver a Deus face a face. E, se conseguisse, o quão terrível seria para ele.

Em primeiro lugar, há o problema da finitude. Somos criaturas e Deus é o Criador. Somos finitos e Deus é infinito. Como abraçar o infinito? É possível colocar o oceano em um copo? Como nosso pequeno cérebro conteria aquele que o criou? Os místicos argumentam que é a alma que o recebe e que visão é apenas força de expressão. Mas o mesmo pode ser dito da alma. Acaso ela é infinita?

Em segundo lugar, estamos em rebeldia contra Deus. Nossos pais nos legaram tal estado: nascemos rebeldes. Aprendemos com facilidade a pensar, falar e fazer o mal. Como as mães testemunham: “se fosse coisa boa não fazia, mas como é ruim não precisou ser ensinado”!

Quando recebemos Jesus em nossas vidas somos declarados, pelo Pai, filhos amados. Totalmente justos diante dele que nos sela com o Espírito Santo o qual nos ensinará a renegar as paixões características dessa velha natureza e nos conduzirá em todas as decisões. Entretanto não perdemos nossa natureza pecaminosa. Ela nos acompanhará à sepultura.

Somos tidos por Deus como seus filhos, apenas por estarmos em seu Filho. E esse é o ponto ao qual eu queria chegar: seu Filho se fez um de nós para que fôssemos feitos um com ele!

Você já reparou que Jesus foi o único “pecador” que se encontrou com Deus face a face? Percebeu qual é o destino dos que vêem Deus face a face? Entendeu por que Deus não atendeu o pedido de Moisés? Ou será que você já esqueceu? “Respondeu-lhe: Farei passar toda a minha bondade diante de ti e te proclamarei o nome do SENHOR; terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia e me compadecerei de quem eu me compadecer. E acrescentou: Não me poderás ver a face, porquanto homem nenhum verá a minha face e viverá” (Ex 33.19-20).

Jesus viu Deus face a face para não termos de fazê-lo.

Então nunca veremos a Deus? Veremos sim: em Cristo. Que além de ser a expressão exata do Ser de Deus é quem sustenta todas as coisas pela sua palavra. Também nele habita corporalmente a plenitude da Divindade. Leia Hebreus 1.1-4 e Colossenses 2.8-9) e nunca se esqueça de que Emanuel significa “Deus conosco”.

Esqueça o engodo de nossos poetas e as tolices que assolam nossos dias e escute as palavras do próprio Senhor: “Filipe, há tanto tempo estou convosco, e não me tens conhecido? Quem me vê a mim vê o Pai; como dizes tu: Mostra-nos o Pai? Não crês que eu estou no Pai e que o Pai está em mim? As palavras que eu vos digo não as digo por mim mesmo; mas o Pai, que permanece em mim, faz as suas obras (Jo 14.9-10)”.