quinta-feira, 25 de abril de 2013

Paz e Felicidade

Judá e Israel habitavam seguros,
cada um debaixo da sua videira e debaixo da sua figueira,
desde Dã até Berseba, todos os dias de Salomão.
(1Re 4.25)

Essa declaração é surpreendente. Ela contém informações objetivas importantes, mas talvez sejam as informações subjetivas que mais nos interessem nos dias tão confusos que vivemos.

Objetivamente podemos deduzir que ela foi escrita depois da divisão de Israel (e por um escriba de Judá), ou seja: muitos anos depois do reinado de Salomão, do contrário não se referiria ao todo como Judá e Israel.

Ficamos sabendo também que Salomão promoveu dias de paz e segurança. Igualmente que a extensão geográfica de seu reino foi de Dã (ao norte, próximo da divisa atual com o Líbano) até Berseba (ao sul na altura da atual Faixa de Gaza).

Subjetivamente porém há muitas outras informações, começando na palavra habitar, pois ninguém habita debaixo de árvores, muito menos uma nação inteira. E, se habitar, não habitará segura.

A melhor explicação que já vi para este pequeno texto está no “Dictionary of Biblical Imagery”: “Um fazendeiro cansado termina seu longo dia no vinhedo, e enquanto o sol se põe, ele se assenta, sob uma das muitas figueiras que rodeiam sua casa. Sua esposa, senta-se ao seu lado e ambos olham o vale abaixo carregado de vinhas frutíferas que prometem um bom ano. Enquanto a safra prosperava, nasceu-lhes o terceiro filho. O Rei é um fiel servo de Deus, que pacificou as fronteiras do país e garantiu a paz e segurança do povo”. Esta é a imagem que o Antigo Testamento faz de felicidade.

Quando chegamos ao Novo Testamento temos uma figura igualmente desconcertante: “A igreja, na verdade, tinha paz por toda a Judéia, Galileia e Samaria, edificando-se e caminhando no temor do Senhor, e, no conforto do Espírito Santo, crescia em número” (At 9.31).

Como tinham paz? Já no capítulo 4 ficamos sabendo da prisão de Pedro e João e do interrogatório a que foram submetidos diante do mesmo Sinédrio que condenou o Senhor Jesus.

No capítulo 5 torna-se claro, através da mentira de Ananias e Safira, que o pecado, a despeito do poder com que o Espírito Santo impregnara a Igreja, ainda permanecia arraigado. E açoites que os apóstolos sofreram são prenúncios das perseguições que virão.

No capítulo 6, vemos que o pecado já tinha se alastrado. De mentira já havia se tornado murmuração. No capítulo 7 conhecemos o primeiro mártir.

No capítulo 8 a primeira perseguição instalou-se. E se esta contribuiu para que o Evangelho chegasse aos samaritanos, é no território deles que vemos o primeiro caso de tentativa de comércio das coisas sagradas.

E no capítulo 9, no meio da perseguição de Saulo, que é descrita como “respirando ameaças de morte contra os discípulos do Senhor”, Lucas nos diz que a Igreja tinha paz. Como entender isso? Entendemos facilmente o conceito do Antigo, mas como entender o conceito do Novo Testamento?

Do mesmo modo que a Igreja não é mais um país, e sim o povo eleito de Deus em todos os países... Do mesmo modo que o rei não é mais aquele que se assenta na Jerusalém terrestre, mas na Jerusalém celestial... Do mesmo modo que a garantia de nossa segurança não é a guarda das fronteiras do país que habitamos, mas a guarda de nossas almas... Assim é a paz da Igreja e por consequência sua felicidade. Afinal, aquele que disse “Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou; não vo-la dou como a dá o mundo. Não se turbe o vosso coração, nem se atemorize” (Jo 14.27) não estava falando do que desconhecia. E essa “paz que excede a todo entendimento” (Fp 4.7) não foi apenas um cumprimento banal, dito quando se chega ou quando se sai. Custou sua vida.

Não confundamos portanto a diversão efêmera, por vezes imoral e pecaminosa que avidamente procuramos com a verdadeira paz e felicidade que só o Senhor pode nos dar.

sábado, 20 de abril de 2013

As quatro “Grandes Comissões”

Você já deve ter notado que ultimamente tenho escrito sobre os dias finais de Jesus. Domingo passado analisei rapidamente sua ordem: pastorear. Pois bem: hoje vou falar sobre a Grande Comissão. Aliás, sobre as quatro, pois cada evangelista a narrou de um modo diferente.

Observe que Mateus (28.18-20) faz do “ide” 1) uma consequência de Jesus ter recebido toda autoridade (ou poder) no céu e na terra. 2) Que tal missão consistia em fazer discípulos batizados obedientes aos mesmos ensinamentos que Jesus havia dado a eles, o que pressupõe mais do que um simples anúncio do Evangelho.

Marcos (16.14-20) também usa o termo “ide”, mas faz dele uma prova de fé. A incredulidade grassava entre os onze. Não creram no anúncio da ressurreição feito por Madalena (v9), nem no anúncio feito pelos dois que “estavam de caminho para o campo” (v12). Agora o Senhor lhes aparece em pessoa. Censura-lhes a incredulidade e dureza de coração e lhes ordena pregar o evangelho a toda criatura e promete a companhia de sinais aos que cressem.

A de Lucas (24.44-49) ocorre em um clima dramático, pois narra a surpresa dos apóstolos ao verem o Senhor ressuscitado. Tão surpresos, que, para provar não ser um “espírito” comeu com eles. Lembrou-lhes então do que havia falado e “lhes abriu o entendimento para compreenderem as Escrituras”. Revelou-lhes então como seria feito a evangelização dos povos: começando em Jerusalém, depois que fossem revestidos de poder.

João (20.19-23) inicia o relato falando da materialização de Jesus em um cômodo trancado e paradoxalmente mostrando suas mãos e seu lado ferido. A missão que Jesus lhes dá recebe então uma analogia com a missão que o próprio Jesus recebeu do Pai. E João é o único a declarar que ele soprou sobre os onze o Espírito Santo. Até hoje há divergências sobre o significado disso: era uma ação profética – uma representação de algo que estava para acontecer (como Aías rasgou a capa de Jeroboão em 12 pedaços (1Re 11.29-32)) – ou eles receberam o Espírito Santo e no Dia de Pentecostes receberam seu poder? A seguir garante-lhes o poder de perdoar pecados ou não.

O que há de comum: 1) Todas elas ocorrem após a ressurreição de Jesus. 2) Todas são unânimes em estabelecer como alvo o mundo. 3) Todas tomam por base a autoridade de Jesus, pois é ele quem envia.

O que há de diferente: 1) Mateus destaca a promessa do Senhor de estar com eles. 2) Marcos destaca (v20) que eles conseguiram. 3) Mateus e Marcos deixam mais claro a necessidade do batismo. 4) Mateus e Marcos usam um tempo verbal muito difícil de traduzir em português. Literalmente seria: “Enquanto vocês estiverem indo”, ou também é possível: “depois que você forem”. Porém, o sentido mais forte é a certeza de que terão de ir. Daí a preferência pela tradução imperativa IDE). 5) Lucas e João deixam mais claro a necessidade da orientação do Espírito Santo. 6) Lucas é específico em dizer que eles seriam testemunhas da morte e ressurreição de Jesus e que deveriam esperar em Jerusalém o momento certo de começar. 7) João é específico em dizer que eles teriam o poder de perdoar ou reter pecados.

Concluindo: O que podemos retirar de ensino para nós? Não há a menor dúvida de que o primeiro ensino é o que pesa sobre nossos ombros: a missão de manter a Grande Comissão cumprida, já que Marcos diz que ela o foi. E Paulo confirma esse ensino (Cl 1.23). Porém, sinceramente creio que já deixamos de fazer isso a muito tempo.

O segundo ensino é que a missão que o Senhor deu aos seus apóstolos, e, por extensão, a nós, é tão rica, quanto foi sua própria missão entre nós: Houve necessidade de quatro evangelistas para descrever ambas.

Tendo como alvo o mundo, como conteúdo o Evangelho puro, nossa missão entre judeus terá um aspecto, entre gentios terá outro. Porém, será tão difícil quanto a vida de uma ovelha no meio de lobos, às vezes só conseguiremos anunciar (como Paulo fez no Areópago), às vezes conseguiremos formar discípulos que, por sua vez formem outros (como Paulo ordenou a Timóteo que fizesse).

Não teremos o mesmo poder que os apóstolos tinham, mas contamos com algo que eles não possuíam (e ansiavam ter): a totalidade da revelação escrita (lembra-se de Paulo pedindo os livros e pergaminho que ficaram na casa de Carpo?), mas certamente estaremos cumprindo uma missão semelhante a de nosso Senhor.

sábado, 13 de abril de 2013

Pastorear

O exercício desse ministério está profundamente enraizado na tradição cultural e religiosa do antigo povo de Deus e, não tenho a menor dúvida, de que Jesus tenha escolhido de propósito a figura do pastor de ovelhas, para que, por sua simplicidade, os primeiros pastores de almas encontrassem claramente, não apenas na cultura, mas especialmente nas Escrituras as diretrizes do que significa ser pastor e legassem um modelo claro de atuação a seus sucessores.

Como pastor perto dos 30 anos de ministério ordenado, percebo que hoje faço muito mais o que as circunstâncias me impõem, e o que minhas ovelhas demandam, do que aquilo que os primeiros pastores me deixaram de modelo e principalmente o que a Bíblia exige de mim. E, tenho certeza, de que outros, como eu, percebem o mesmo.

É claro que sonho com uma reforma (o verdadeiro protestante sempre abriga em seu peito o não conformismo de Rm 12.1-2), mas não é possível fazer como fazemos nos computadores: apertar um botão de reset (ou desligar e ligar). As pessoas não são assim: As mudanças vêm pelo ensino persistente da Palavra de Deus, pela paciência e até mesmo pelos ouvidos moucos com que um pastor tem de receber afrontas.

O que a Bíblia ensina sobre pastores é mais do que um artigo pode comportar, mas, em linhas gerais, partindo da figura do pastor de ovelhas, podemos resumir dizendo que ele é quem cuida de um rebanho.

A ênfase maior que o Antigo Testamento dá nesse cuidado é na alimentação do rebanho, pois a palavra que mais se repete (mais de 160 vezes) tem sua raiz nesse contexto.

A primeira vez que ela aparece é em Gn 29.7 onde é traduzida por alimentar ou por apascentar. Volta a aparecer em Gn 29.9, 30.36, 36.24 e 41.2. E embora se refira a apascentar ou alimentar diversos tipos de animais (poeticamente até gazelas em Ct 4.5) merece destacar que o supremo Pastor tenha por primeira preocupação conduzir suas ovelhas a pastos verdes e às águas tranquilas (Sl 23.1-2).

O uso poético dessa palavra e seus derivados é importantíssimo. Em Pv 15.14 “a boca dos insensatos se apascenta de estultícia”. E o profeta Isaías (44.20) diz que o idólatra “se apascenta de cinzas”. Observe que nestes textos o verbo apascentar pode ser substituído por alimentar-se como a Versão Atualizada fez em Is 65.25. Mas, certamente o uso mais rico está em Jr 3.15: Dar-vos-ei pastores segundo o meu coração, que vos apascentem com conhecimento e com inteligência”.

Por falta espaço menciono apenas que outro uso no Antigo Testamento era o domínio dos povos invasores que devoravam as cidades conquistadas (Mq 5.6). Literalmente: se alimentavam delas.

Porém, o que mais me impressiona é ver que uma das funções do rei de Israel era ser “O Pastor de Israel”: Confira o contexto de 1Re 22.17 e 2Cr 18.16.

Não há grandes mudanças no Novo Testamento. O quadro cultural e religioso continua, mas a Igreja introduz um elemento novo: O verdadeiro Pastor, do qual todos os reis de Israel e sacerdotes, eram apenas sombra, torna-se um pastor onipresente por seu Espírito em todos os corações. Porém, a lembrança concreta disso é realizada através da Comunhão dos Santos, em sua Igreja, que deve ser conduzida, por oficiais que recebem a tarefa de pastoreá-la.

Essa tarefa é dada de formas parecidas, mas com nuanças interessantes. Veja algumas:

Paulo dirigindo-se aos presbíteros da Igreja de Éfeso: “Atendei (prosecho) por vós e por todo o rebanho ...” (At 20.28).

Pedro dirigindo-se aos presbíteros de uma região enorme, que equivale atualmente à toda Turquia e a algumas regiões mais ao norte, ordena: “Rogo, pois, aos presbíteros que há entre vós, eu, presbítero como eles, [...] pastoreai (poimaino) o rebanho de Deus que há entre vós, [...] como Deus quer;” (1Pe 5.1-2).

Por fim veja as ordens que Jesus deu a Pedro: “... perguntou Jesus a Simão Pedro: Simão, filho de João, amas-me mais do que estes outros? Ele respondeu: Sim, Senhor, tu sabes que te amo. Ele lhe disse: Apascenta (Bosko) os meus cordeiros. Tornou a perguntar-lhe pela segunda vez: Simão, filho de João, tu me amas? Ele lhe respondeu: Sim, Senhor, tu sabes que te amo. Disse-lhe Jesus: Pastoreia (poimaino) as minhas ovelhas. Pela terceira vez Jesus lhe perguntou: Simão, filho de João, tu me amas? Pedro entristeceu-se por ele lhe ter dito, pela terceira vez: Tu me amas? E respondeu-lhe: Senhor, tu sabes todas as coisas, tu sabes que eu te amo. Jesus lhe disse: Apascenta (Bosko) as minhas ovelhas” (Jo 21.15-17).

Temos, portanto, três palavras: Atender (prosecho), pastorear (poimaino) e apascentar (bosko).

Prosecho, além daqui (At 20.28), nas outras 23 vezes que aparece no NT pode ter pelo menos 7 sentidos correlatos: Acautelar-se (tanto da hipocrisia, quanto dos falsos profetas ou do fermento dos fariseus). Atender tanto a verdade como às palavras de Filipe ou às mentiras de Simão, o mago. Ocupar-se de mitos como Paulo proibiu aos efésios e aos cretenses. Dar-se, ao vinho ou aos espíritos enganadores. Aplicar-se à leitura, apegar-se com mais firmeza às verdades ouvidas e atender à palavra profética.

Já poimaino, em suas 11 aparições tem 5 sentidos básicos. Apascentar, como Mateus se refere a profecia de Miquéias, ou o próprio rebanho do qual se nutre. Guardar o rebanho mesmo que se refira a gado graúdo. Alimentar-se como os hereges fazem nas festas de fraternidade da Igreja. Guiar como o Cordeiro fará com os egressos da grande tribulação. E Reger como o vencedor mostrado a Igreja de Tiatira e o cavaleiro que monta o cavalo branco.

Por sua vez bosko é monossêmica e nas 9 vezes em que aparece no NT refere-se sempre a comer. Além de Jo 21.5 os sinóticos falam apenas da manada de porcos de Gadara e da vontade que as alfarrobas provocavam no filho pródigo.

Resumindo: Quando Jesus ordenou a Pedro, quando Paulo ordenou aos presbíteros de Éfeso e quando Pedro ordenou aos muitos presbíteros de um vasto território com muitas nações de culturas díspares (unificadas apenas pela fé cristã e um sistema de governo presbiteriano), estavam dando uma ordem razoavelmente clara: Cuidem, guiem e alimentem o rebanho do Senhor.

Obviamente estes verbos possuem modificadores ou predicados. E cuidar, tanto quanto guiar, ou alimentar, às vezes podem ser literais, para uma comunidade perseguida. Porém, via de regra, refere-se muito mais a necessidades da alma diante da nova fé que abraçaram.

Observe que Jesus toma figuras em profissões simples: Cerca de dois anos antes Pedro e André foram chamado por Jesus para ser “pescadores de homens” (Mt 4.18-19). Agora, Pedro é chamado a ser pastor do “rebanho do Senhor” (Jo 21.15-17).

Eu não estaria totalmente errado se dissesse que pastorear, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, é principalmente alimentar ou conduzir à alimentos. Não foi sem causa que se resumiu tudo na palavra apascentar, palavra derivada do latim pascere: “pastar”.