Nos últimos vinte anos tenho pensado muito a respeito desse assunto, pois não vejo a ficção como algo neutro, que nem faça bem nem faça mal, e quanto mais penso, mais me inquieto.
Qualquer obra de ficção é uma criação de quem a fez. Seu autor se torna um criador de um universo, com tempo, espaço e vidas próprias. Paradoxalmente é um universo que não existe, que, entretanto, pode influenciar as vidas reais, muito mais do que muitos estudos ou exortações sobre a realidade.
Tome qualquer novela, dessas que passam na televisão de sua casa. Primeiro: O enredo dela sempre se baseará sobre algum tipo de engano. Ou um engano honesto ou cometido por um vilão. Geralmente os enganos cometidos por vilões atraem mais, especialmente se forem sobre a paternidade de alguém ou sobre algum assassinato. Elas nunca variam muito. O que mudam são apenas os locais, os nomes dos personagens, os atores, os instrumentos do engano, as armas do vilão, etc. Sua história sempre é a história da superação de um, ou de muitos enganos. Obviamente há outros gêneros, mas uma pesquisa (pois não sou um aficionado) revelou-me que as novelas que começaram com outro gênero, precisaram se adaptar a esse para garantir audiência.
Segundo: Preste atenção no legado que ela deixa. A moda que ela lança, as músicas que se tornam (ou voltam a ser) sucessos e até os nomes dos personagens que migram para os pobres bebês que nascem durante o período em que ela está no ar.
Terceiro: Os padrões de comportamento que passam a ser, no mínimo, discutidos. Esses padrões, que muitas vezes pensamos terem sido escolhidos por estarem na moda, às vezes são forçados por um escritor, ou um pequeno grupo deles, que quer implanta-los. Depois de repeti-los em muitas ocasiões eles passam a ser tidos como aceitáveis.
A ficção nos lança em um mundo inexistente, cujas as fronteiras com o mundo real, em alguns lugares, são difíceis de perceber. Se na ficção existe um herói que voa e isso claramente não existe - embora alguns com mentes débeis ou fragilizadas por drogas já tentaram imitar e morreram - uma obra pode mostrar alguém de vida totalmente normal, que almoça, janta e dorme como todas as pessoas, mas aprendeu a possibilidade de fazer algo novo, com um personagem que não existe senão na cabeça de seu criador humano, que é pecador e totalmente depravado pelo pecado.
Agrava-se o fato de que os autores ficcionais dificilmente são limitados por algum tipo de “cerceamento moral” já que a competitividade os obriga a ser cada vez mais criativos em mostrar novos modos de matar alguém, ou de praticar atos libidinosos ou qualquer outra coisa que choque, ou pelo menos atraia uma plateia e lhes garanta o título efêmero de “o mais criativo”.
Eu pertenço a uma geração que viu o primeiro beijo heterossexual da TV, depois da descoberta gradual do corpo feminino finalmente o primeiro nu frontal e alguns anos atrás o primeiro beijo homossexual. No cinema, embora a velocidade tenha sido mais rápida, as coisas também foram progressivas. Numa entrevista recente, um ator, cujo nome prefiro não dizer, confessava que todos tinham como dever testar os limites da censura da época, como têm o dever de testar o que a sociedade aceita hoje.
Repare o quanto isso valida a expressão “A vida imita a arte”.
Um texto mínimo como este não pode pretender ser um ensaio sobre algo tão extenso. Deixando de lado as possibilidades filosóficas e até teológicas (como C. S. Lewis conseguiu fazer tão bem) e ficando em nossa ficção cotidiana dá pra perceber alguns valores que se repetem, como se repetem os instrumentos do enredo.
Sempre os personagens declaram ser, acima de tudo, fiéis a si mesmos. E essa fidelidade justifica tudo. Para ser fiel a si mesma uma mãe abandona seus filhos e segue uma amante mundo afora. Um avô deixa sua família, trabalho e amigos para viver uma aventura verdadeira com uma jovenzinha que lhe traz a juventude de volta. Muitas vezes a fidelidade a si mesmo é mostrada como uma virtude: honestidade (mesmo que para isso tenha de ser desonesto para com os outros). É como a novela que mostrou um rapaz que não encontrava nenhum trabalho de que gostasse até que experimentou ser assassino (como se um jovem já tivesse experimentado todos os demais tipos de trabalho).
Um segundo valor se impõe para validar o primeiro: o encontro com a felicidade (sem que haja uma verdadeira definição do que seja felicidade, mas admitindo que todos a reconheçam tão logo a encontrem). O encontro com ela justifica tudo. Tudo mesmo.
Você há de convir comigo que nunca teria feito determinadas coisas se não as visse primeiro nos meios de comunicação de massa. Isso é altamente provado pela propaganda, que passa a vender um produto do qual nunca se ouviu falar antes. Pois bem: São exatamente esses meios os mais comprometidos com a ficção a tal ponto de tornarem a própria verdade numa espécie de ficção.
Obviamente a ficção não deixa de ser um instrumento útil nas mãos de um mestre. Veja, por exemplo as parábolas de nosso Senhor e as lições que se pode tirar delas. Entretanto, todas elas possuem um compromisso total com Deus e com os valores da realidade, pois sobretudo vivemos em um mundo real.
Creio que é por esta razão que o apóstolo Paulo, escrevendo aos filipenses, destaca a importância de se considerar a realidade em detrimento da ficção ou fantasia, como algo importante para a solidificação da vida espiritual: “Finalmente, irmãos, tudo o que é verdadeiro, tudo o que é respeitável, tudo o que é justo, tudo o que é puro, tudo o que é amável, tudo o que é de boa fama, se alguma virtude há e se algum louvor existe, seja isso o que ocupe o vosso pensamento” (Fp 4.8).
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