As Sagradas Escrituras sempre foram claras em
falar da natureza heterogênea da Igreja. Por exemplo: "Não mintais uns aos outros, uma vez que vos despistes do
velho homem com os seus feitos e vos revestistes do novo homem que se refaz
para o pleno conhecimento, segundo a imagem daquele que o criou; no qual não
pode haver grego nem judeu, circuncisão nem incircuncisão, bárbaro, cita,
escravo, livre; porém Cristo é tudo em todos. Revesti-vos, pois, como eleitos
de Deus, santos e amados, de ternos afetos de misericórdia, de bondade, de
humildade, de mansidão, de longanimidade” (Cl 3.9-13).
Essas ordens pressupõem
a existência de tensões expressas através de mentiras e de malquerenças entre
pessoas de nacionalidades (gregos, judeus, citas, que eram originários da
Citia, região próxima ao Mar Negro, atual Cazaquistão) e condições sociais
diferentes (escravos ou livres).
Isso era
consequência da vida que eles tinham antes. Agora, a nova vida em Cristo os
possibilita a não mentir e a “vestirem-se” de misericórdia, bondade, humildade,
mansidão e longanimidade.
Dando instruções à
seus discípulos, o Senhor Jesus advertiu contra problemas entre os membros da
Igreja: “Se teu irmão pecar contra ti, vai argui-lo entre ti e ele
só. Se ele te ouvir, ganhaste a teu irmão. Se, porém, não te ouvir, toma ainda
contigo uma ou duas pessoas, para que, pelo depoimento de duas ou três
testemunhas, toda palavra se estabeleça. E, se ele não os atender, dize-o à
igreja; e, se recusar ouvir também a igreja, considera-o como gentio e
publicano.” (Mt 18.15-17).
O próprio Senhor
sabia que dentro da Igreja surgiriam desentendimentos. Afinal, apenas nosso
espírito (que está pronto) foi regenerado. A carne (que é fraca) aguarda a
ressurreição. Portanto, na medida em que a carne se sobressai os
desentendimentos (e até brigas) passam a fazer parte da vida dos membros da
Igreja.
E para resolver
tais problemas o Senhor Jesus aponta dois caminhos: arguir o irmão ou
denunciá-lo à Igreja.
Essa arguição,
preconizada pelo Senhor, pressupõe o desejo mútuo de paz. O errado admite seu
erro e o ofendido o perdoa. A frase “ganhaste
teu irmão” indica que o objetivo da arguição deve ser positivo
(restaurar, redimir) e não simplesmente repreender ou confrontar por
confrontar. Certamente o Senhor tinha em mente o mandamento: “Não
guardem ódio contra o seu irmão no coração; antes repreendam com franqueza o
seu próximo para que, por causa dele, não sofram as consequências de um pecado”
(Lv 18.17 NVI).
A recusa do
faltoso leva a solução do problema à uma segunda etapa. Desta vez com uma ou
duas testemunhas. O texto não deixa claro se o papel das testemunhas será observar
e atestar a disposição do ofendido a corrigir o desentendimento ou pressionar o
faltoso a admitir seu erro, ou ainda, as duas coisas. O certo é que algo que
estava sendo tratado privadamente tornou-se público.
A terceira recusa
do faltoso leva o problema a outro foro:
a Igreja. A interpretação imediata é que o faltoso seja denunciado à
congregação, porém eu creio que é possível entender-se também à liderança da
Igreja. Veja 1Co 6.5: “Para vergonha vo-lo digo. Não há,
porventura, nem ao menos um sábio entre vós, que possa julgar no meio da
irmandade?”. Nas Igrejas Presbiterianas o conselho de presbíteros
recebe a queixa e transforma-se em tribunal para julgar o caso.
Finalmente, a
quarta recusa do faltoso leva a uma ação drástica. Atualmente há duas interpretações
para a expressão “considera-o
como gentio e publicano”. A primeira defende que a igreja apenas mude seu modo
de tratar com o faltoso: como se ele fosse um descrente. Uma paráfrase bíblica
diz: “se ele também não ouvir a igreja, comece do zero, tratando-o como um
descrente: alerte-o da necessidade de arrependimento e ofereça outra vez o amor
perdoador de Deus” (A Mensagem).
Certamente essa é
uma péssima exegese, pois além de introduzir diversos assuntos estranhos ao
texto original descaracteriza o que o Senhor Jesus estabelece como uma pena
pelas muitas recusas do faltoso.
A segunda
interpretação, ao contrário, vê este tratamento como uma pena imposta ao
ofensor (seja pela congregação, seja pela liderança), que deve ser observada
por toda Igreja.
Ser tratado como
gentio e publicano é o mesmo que excluído da comunhão com o povo de Deus.
A existência de
conflitos na Igreja nos dá, pelo menos, duas lições: 1) É uma organização de
pecadores que procuram viver uma vida cada vez mais santa, e 2) Ela se submete
ao seu Senhor. Tanto para dizer quais coisas estão erradas, quanto para
resolver o erro.