Praticamente todo o ocidente está dizendo: Je suis
Charlie e pra falar a verdade, dá vontade de dizer também. Afinal, quem não
se comoveu com o acontecimento terrível? Porém, há o que pensar.
É tido como certo que a violência decorreu das charges publicadas
pelo semanário. Foi uma vingança. Não apenas das últimas, que me pareceram mais
ofensivas aos cristãos, mas de tantas outras que marcaram a história do jornal.
A charge deforma o assunto exagerando alguma característica
peculiar, ridicularizando uma situação, ou argumentando ad absurdum.
A charge vale-se do burlesco, da sátira, da paródia e do duplo sentido para
apresentar pessoas ou acontecimentos no limite entre o risível e o infame. Não
é incomum encontrar quem, retratado numa charge, sinta-se difamado. Aliás, foi
isso o que aconteceu com as primeiras charges, feitas no século XIX:
Governantes poderosos sentiram-se difamados e os chargistas amargaram a prisão.
É muito difícil estabelecer a "honestidade" de uma
charge. A que apresenta objetivamente uma situação ridícula poderia ser
considerada "honesta". Entretanto, a que transpira os conceitos
subjetivos do autor pode ser perfeitamente uma provocação ou mesmo uma
difamação.
As muitas inaugurações da mesma obra feita por um político
pode ser um ótimo tema para uma charge, mas mostrar o profeta dos muçulmanos
engajado em um beijo homossexual dificilmente servirá para alguma coisa além de
produzir ódio.
Salomão nos ensinou que "Pois assim como bater
o leite produz manteiga, e assim como torcer o nariz produz sangue, também
suscitar a raiva produz contenda" (Provérbios 30.33), ora é exatamente
isso que os chargistas mortos faziam.
Em hipótese alguma quero justificar a morte deles. Os
atiradores estão totalmente errados. Porém, o que poderia se esperar de um povo
educado desde cedo a desejar morrer em guerra? O que aconteceu em 2005 na
Dinamarca, onde cerca de 50 pessoas morreram, após as charges publicadas
no Jyllands Posten, não serviu de advertência?
Ora, a decantada liberdade de expressão, tão cara as
sociedades democráticas, e mais especialmente aos irresponsáveis, nunca será
superior ao senso comum, acumulado em milênios de civilização que também nos ensina:
"quem fala o que quer, ouve o que não quer". Muito menos supera às
palavras de quem criou a humanidade: "Digo-vos que de toda palavra
frívola que proferirem os homens, dela darão conta no Dia do Juízo; porque,
pelas tuas palavras, serás justificado e, pelas tuas palavras, serás
condenado" (Mateus 12.37-37).
Vivemos dias em que o errado é apenas o que contraria a lei
ou costumes bem estabelecidos. Mas, paradoxalmente hoje é quase uma obrigação
agredir os costumes. Ser rebelde tornou-se desejável e necessário a formação do
jovem, e sinal de criatividade no adulto. Portanto, hoje, o deboche, o escárnio
e a difamação, mesmo contrariando leis e costumes bem estabelecidos, procuram
abrigo sob o manto da criatividade, do humor e especialmente da "liberdade
de expressão".
Para o cristianismo, antes das leis e antes dos costumes vem
o pecado. Determinada ação, ou comportamento, mesmo não sendo ilegal, nem agredindo
qualquer costume bem ou mal estabelecido, pode ser pecado. Para o cristianismo
o pecado manifesta-se também nas palavras: faltar com a verdade, promover o
engano, difamar a Deus e o nosso próximo são pecados claramente estabelecidos
nas Sagradas Escrituras. E qualquer tipo de promoção da mentira está filiada
diretamente ao inimigo de nossas almas: "Ele [o diabo] foi
homicida desde o princípio e jamais se firmou na verdade, porque nele não há
verdade. Quando ele profere mentira, fala do que lhe é próprio, porque é
mentiroso e pai da mentira" (João 8.44).
Portanto, eu não posso dizer "Je suis Charlie".
Lamento, deploro e abomino o que aconteceu aos chargistas e a seus
companheiros, mas não posso concordar com o que eles faziam. Igualmente
reprováveis são os assassinos e espero que, os que ainda estiverem vivos, sejam
colocados sob os magistrados e paguem por seus atos.