Desde meus tempos de seminário, meus professores me
alertavam: não se preocupe com a canonização de fulano ou beltrano, mas mostre
o quanto é ímpio o próprio ato de canonizar alguém. Entretanto, o caso de
Anchieta é terrível, pois além do erro que existe em declarar que alguém deva
ser adorado, o personagem em questão é mais do que um pecador comum. É um
assassino. Um assassino de protestantes, pela única razão de serem
protestantes.
Nascido em 1534, em Tenerife, uma das Ilhas Canárias, estudou
filosofia em Portugal. Veio para o Brasil em 1553 e depois de muitos trabalhos,
inclusive a edificação da casa ao redor da qual se formaria a Vila de São
Paulo, induziu Mem de Sá, governador-geral, a condenar Jacques Le Balleur à
morte, tendo ajudado em seu enforcamento.
Naqueles dias o rei da França, fiel súdito do Papa, estava
inconformado com a divisão dos novos descobrimentos entre Espanha e Portugal (o
Tratado de Tordesilhas), e recebeu com alegria a proposta de seu Almirante,
Villegaignon, de fundar nessas novas terras, mediante a força: a “França
Antártica”.
Como não tinha recursos autorizou outro almirante, Colligny,
que tinha bom trânsito junto à Igreja de Genebra, a levantar os fundos
necessários. A Igreja, refúgio de muitos franceses perseguidos, viu uma boa
oportunidade para estabelecer alguns deles em um local livre de perseguições.
Então, para a primeira viagem, o próprio Calvino selecionou diversos pastores e
artesãos.
Ao chegarem aqui, Villegaignon mostrou sua verdadeira face:
passou a persegui-los e matou alguns. Porém, outros escaparam. Le Balleur ficou
entre os índios e anos mais tarde foi reconhecido e preso em São Vicente.
Levado a Bahia, enfrentou o tribunal da inquisição e foi condenado a morte “no
mesmo local em que começou a vomitar suas heresias”.
Não se sabe ao certo como Anchieta ajudou no enforcamento.
Há quem diga que, diante a recusa do carrasco em prosseguir o enforcamento, ele
tenha esganado Le Balleur com as próprias mãos. Outros dizem que ele recebeu a
confissão de Le Balleur, abjurando o protestantismo e, preocupado com a demora
de sua morte após dependurado pelo pescoço, o teria misericordiosamente puxado
pelos ombros com o fim de abreviar seus sofrimentos. Se não há certeza de como,
a demora em canoniza-lo e a forma como ele foi canonizado atestam sua
participação.
A campanha para sua beatificação teve início no século 17 e
só em 1980 o Papa João Paulo II o declarou beato e nesta quinta-feira passada
(3 de abril de 2014) o Papa Francisco o decretou santo. Foi dispensada a
comprovação de milagre, como exige a própria lei da Igreja Católica Apostólica
Romana (ICAR).
Nós, protestantes vemos muitos problemas em declarar alguém
santo:
1º - Acreditamos em milagres. Acreditamos que Deus pode
fazê-los, e os faz, quando quer. Mas confessamos que a capacidade de fazê-los espontaneamente
foi restrita a alguns profetas e aos apóstolos.
2º - Rejeitamos completamente a ideia de adorar alguém além
de Deus. Aliás Deus proíbe isso terminantemente. Porém, a ICAR torna alguém
beato ou santo exatamente com o objetivo de ser adorado. Veja o que diz seu
direito canônico:
Cânone 1186 — Para fomentar a santificação do povo de
Deus, a Igreja recomenda à veneração peculiar e filial dos fiéis a
Bem-aventurada sempre Virgem Maria, Mãe de Deus, que Jesus Cristo constituiu
Mãe de todos os homens, e promove o verdadeiro e autêntico culto dos outros
Santos, com cujo exemplo os fiéis se edificam e de cuja intercessão se valem.
Cânone 1187 — Só é lícito venerar com culto público
os servos de Deus, que foram incluídos pela autoridade da Igreja no álbum dos
Santos ou Beatos.
Em última análise, ao canonizar Anchieta, o Papa está
dizendo: Adorem o carrasco Anchieta.
Não deixe de ver:
5 comentários:
Pastor, podemos considerar Calvino também um assassino, pela morte de Servet?
Anônimo;
Não creio que seja para comparar por diversas razões. Porém, com respeito ao tema em questão, vale salientar que não estou propondo - e nunca vi quem propusesse - a santidade de Calvino, como a ICAR está fazendo com Anchieta.
Esse é o ponto fundamental de meu post.
Fôlton
Prezado Pastor,
Citei o caso de Calvino apenas para lembrar que nós, protestantes, insistimos em ver o argueiro que está no olho do irmão, porém não reparamos na trave que está no nosso próprio.
Temos uma tendência a criticar duramente os pobres católicos, esquecendo que eles merecem muito mais nossa compaixão do que o nosso julgamento, pois este pertence ao Senhor.
O senhor diz que Anchieta é "mais do que um pecador comum. É um assassino. Um assassino de protestantes, pela única razão de serem protestantes". E existem graus de pecador? Me parece que o único pecado diferenciado na Bíblia é o pecado contra o Espírito Santo.
Paulo também não perseguiu cristãos, pela única razão de serem cristãos? E depois não se converteu, e foi inspirado por Deus a nos deixar o legado que nos deixou?
Além disso, o senhor mesmo afirma que "não se sabe ao certo como Anchieta ajudou no enforcamento [de Le Balleur]". In dubio pro reo!
Com todo o respeito, pastor, não vejo como "a demora em canonizá-lo e a forma como ele foi canonizado" atestem realmente "sua participação [no enforcamento]".
Anônimo,
Fiquei feliz em saber que você é protestante. Porém, acho que você está cometendo alguns erros:
1º Nunca a Igreja de Roma foi pobre, qualquer que seja o sentido em que se use o termo pobreza. Especialmente se você usa no sentido de “coitados”. Eles não estão equivocados e sim errados de propósito. Eles conhecem as Escritura e resistem a elas. Não apenas resistem como desdenham delas.
2º A ordem de nosso Senhor “não julgueis para não serdes julgados” foi dada em um contexto de “não se conhecer a verdade”, pois logo a seguir ele ordena a não desperdiçar pérolas com porcos, nem as coisas santas com cães. Como eu saberia quem pode ser enquadrado na categoria de porcos ou de cães sem julgar?
3º Para nós os pecados são iguais, pois todos têm como “salário” a morte e todos demandam igualmente o sacrifício de Jesus. Porém, diante de Deus alguns pecados são mais odiosos do que outros. Em João 19.11 Jesus declara que seu traidor cometeu um pecado maior (obviamente em razão da pessoa que sofreu a traição). No nosso caso (Anchieta matar um protestante apenas por ser um protestante) pode ser considerado um pecado maior, semelhante ao dos judeus de quem o apóstolo Paulo fala em 1Tessalonicensses 2.15-16.
4º Paulo, ao relembrar sua história de perseguições, conclui afirmando ter sido o principal dos pecadores. E isso não é uma figura retórica. Veja: “... a mim, que, noutro tempo, era blasfemo, e perseguidor, e insolente” (1Timóteo 1.13) e “... Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o principal” (1Timóteo 1.15).
5º “in dubio pro reu”... A dúvida não é se ele participou ou não e sim de que modo ele participou!
6º Por qual motivo ele não foi canonizado antes? E por que razão teve ser canonizado por decreto papal?
7º Canonizar... Esse é o motivo que me levou a escrever. Pode haver coisa mais ímpia do que isso? Veja: O pagão ignorante, pega uma árvore caída (estou citando Isaías), faz um tamanco, acende uma fogueira e depois das sobras faz um deus e se prostra diante dele e lhe pede socorro. O moderno sacerdote (douto em filosofia e/ou teologia) faz pior: pega alguém e não apenas se prostra diante dele, mas exige que todos os que estão debaixo de sua liderança o adorem e o tomem como modelo de vida cristã. Pior do que isso: determina que cultos lhe sejam oferecidos com a intenção de que, após ser louvado, ele intercederá em favor de quem o cultua.
Não. Não são pobres coitados. São ímpios terríveis conduzindo um massa de boa fé à perdição.
Fôlton
Touché, Pastor,
O senhor me convenceu.
Só esclarecendo que os pobres a que me refiro são os crentes católicos, não os sacerdotes.
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