sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

Ensaio sobre o uso litúrgico do Credo Apostólico


As grandes vantagens de se usar o Credo Apostólico no culto reformado parecem bastante óbvias. Porém, uma reflexão sobre alguns pontos é necessária:
1. O Credo Apostólico não é o mais antigo. Justo Gonzales[1] descreve vividamente como, por discordâncias com a expressão filioque no Credo Niceno, o Papa passou a usar o que hoje conhecemos como Credo Apostólico. Ou seja: o uso mais antigo era do Credo composto pelo concílio de Nicéia. A crença de que ele foi feito pelos apóstolos do Senhor – especialmente que cada um disse uma de suas declarações – parece meio fantasiosa.
2. O Credo Apostólico não é o mais completo. Praticamente todos os Reformadores, se não o comentaram, escreveram algo sobre ele, mas ele não diz nada a respeito, por exemplo, das Escrituras.
Embora, hoje se saiba detalhes de sua história que os Reformadores não sabiam, o que continua sob disputa é a clausula “desceu ao hades”. Boa parte dos reformados creem que se trata de uma alusão aos sofrimentos de nosso Senhor na Cruz, quando ele estava separado do Pai. Porém, os anglicanos (os que mais se afastam dessa interpretação) colocaram em seu Símbolo de Fé[2]: “Assim como Cristo morreu por nós, e foi sepultado; assim também deve ser crido que desceu ao Hades”.
3. O Credo Apostólico apresenta o cerne da Fé que, nós presbiterianos, professamos. Há quem diga que ele não é oficialmente um Símbolo de Fé de nossa Igreja. Nada mais errado: ele aparece no final do Breve Catecismo e a Constituição de nossa Igreja é clara, já em seu Artigo 1: “A Igreja Presbiteriana do Brasil é uma federação de Igrejas locais, que adota como única regra de fé e prática as Escrituras Sagradas do Antigo e Novo Testamentos e como sistema expositivo de doutrina e prática a sua Confissão de Fé e os Catecismos Maior e Breve […]”.
Há, entretanto, as dificuldades contidas na declaração “creio na santa igreja católica”.
Vivemos numa época em que as palavras adquirem rapidamente, talvez pelo uso errado, outros significados diferentes daqueles que tinham. Nesse caso especificamente pela deformação da palavra católico, desde quando a declaração foi cunhada.
Naquela ocasião o termo “católico” tinha um significado parecido com o de nossa palavra “universal”. Apenas parecido, pois a Igreja de Jerusalém, no dia de Pentecostes, antes de chegar à Samaria ou aos confins do mundo (e se universalizar), já possuía o atributo de ser católica. Mas, como aconteceu com tantas coisas, esse termo, pelo uso repetido e descuidado, acabou virando uma marca: Igreja Católica Romana.
Como pastor, há mais de trinta anos, sou testemunha do desagrado de diversos irmãos (especialmente egressos da Igreja Romana) ao ouvirem esta declaração do Credo Apostólico em nossa Igreja.
Mas a Igreja Cristã[3] é católica sim! Para os reformados ela é católica no sentido de ter uma só Cabeça sobre um só corpo de qualquer “tribo, raça ou nação”: Jesus Cristo. Não o Papa, como quer a Igreja Romana. Ela não é católica por estar presente no mundo inteiro, como vemos ou como nos declara Marcos (Mc 16.20)[4] e Paulo (Cl 1.23)[5]. Como eu já disse, em Jerusalém ela já era católica.
4. Vantagens e desvantagens litúrgicas. O Credo Apostólico usado no culto reformado como uma declaração de fé, satisfaz a, pelo menos, 2 pontos:
a. Diante de Deus é nossa expressão de louvor. Estamos dizendo a ele que, como congregação, comparecemos diante dele e apresentamos nossa fé expressa nas declarações que recitamos.
b. Diante na Igreja é a nossa expressão de unidade. Com o Credo reforçamos nossos laços e nos identificamos a eventuais visitantes também cristãos possuidores da mesma fé e a eventuais visitantes não cristãos (indoutos ou infiéis, nas palavras de Paulo (1Co 14.23)[6] que estamos adorando o verdadeiro Deus e não disseminando confusão ou agindo como loucos[7].
Porém, como conciliar essas bênçãos com o desconforto dos irmãos que já citei, ou a má sensação de “indoutos ou infiéis” que pensam: “eles podem não ser um ramo da Igreja Católica, mas acreditam nela”.
Há outro argumento que cito aqui, não por ser relevante para este ensaio, mas para aguçar nossa percepção sobre a extensão do assunto.
Em um debate com um bispo da Igreja Católica, anos atrás, após as apresentações do mediador, ele declarou, sobre a Igreja que eu representava: “São irmãos. Rebeldes, mas irmãos queridos que fazem questão de nos reconhecer todas as vezes que usam o Credo Apostólico”.
É a tal mentira que, repetida mil vezes, vira verdade.
5. Possíveis alternativas. Conheço 4 alternativas para a declaração “Creio na santa igreja católica”.
a. A que foi usada no hinário da IPB[8]: “creio na santa igreja universal”. Ora isso atesta que o desconforto não é apenas de catecúmenos (ou meu), mas já atingiu a editores que perceberam a erosão da palavra. Porém, o mais irônico é que a opção pelo termo “universal”, apenas muda de “denominação”: da Igreja de Roma para a Igreja do Bispo Macedo.
b. A alteração da ordem das palavras. Usei esta solução no “Auxílios Litúrgicos” que a Capelania do Seminário JMC elabora para seu uso interno. Fica assim: “Creio na Igreja: santa e católica”. Procuro destacar que santidade e catolicidade são atributos da Igreja em que se crê.
c. A alterações da declaração
- Feita pelas Igrejas Evangélicas Reformadas do Brasil em abril de 1998. A Comissão de Música da IER lançou um Hinário com Hinos, Salmos, Confissões e Formas. Nele, a referida declaração, recebeu a seguinte redação: “Creio na santa Igreja de Cristo”.
- Feita pela Igreja Luterana. Em 2018, visitando uma Igreja Luterana, ao recitar o Credo Apostólico, ouvi: “Creio na santa Igreja cristã”. Depois confirmei no site da IECLB (Portal Luteranos)[9].
Conclusão
Confesso que tive uma reação negativa (alteraram até o Credo!) na Igreja Luterana, diferente da que tive ao ler o hinário da IER. Talvez por ter recitado junto, participado liturgicamente. Hoje, vejo que é uma boa solução.
Apesar de serem mais comunicativas, ambas são redundantes (se é Igreja, tem de ser cristã), perdem a profundidade teológica e desconsideram a herança histórica.


[1] Gonzales, Justo, História Ilustrada do Cristianismo. Vida Nova. São Paulo, 2011. Pg 319.
[2] Os 39 Artigos da Religião Anglicana: ARTIGO III – DA DESCIDA DE CRISTO AO HADES

[3] Parece pleonasmo falar de Igreja Cristã. Teologicamente se é igreja tem de ser cristã, entretanto temos aqui outra deturpação das palavras. Deveria ser assim: há uma só Igreja: aquela por quem Cristo morreu: a cristã (que é católica). Entretanto, a expressão “igreja de satanás” já tornou-se comum.
[4] E eles, tendo partido, pregaram em toda parte, cooperando com eles o Senhor e confirmando a palavra por meio de sinais, que se seguiam.
[5] […] não vos deixando afastar da esperança do evangelho que ouvistes e que foi pregado a toda criatura debaixo do céu, e do qual eu, Paulo, me tornei ministro
[6] Se, pois, toda a igreja se reunir no mesmo lugar, e todos se puserem a falar em outras línguas, no caso de entrarem indoutos ou incrédulos, não dirão, porventura, que estais loucos? Porém, se todos profetizarem, e entrar algum incrédulo ou indouto, é ele por todos convencido e por todos julgado; tornam-se-lhe manifestos os segredos do coração, e, assim, prostrando-se com a face em terra, adorará a Deus, testemunhando que Deus está, de fato, no meio de vós.
[7] Colocado neste contexto o uso de um Credo no culto equivaleria a “todos estarem profetizando”.
[8] Já vi em outros hinários um esclarecimento em Nota de Rodapé: “católica significa universal” ou “católica não se refere a uma denominação como a Igreja Romana”.

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