sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Oração abominável

O que desvia os ouvidos
de ouvir a lei,
até a sua oração será abominável
Provérbios 28.9

A história nos mostra que não é de hoje, nem de minha geração, que se enfatiza a necessidade de oração.

Fui ensinado, desde criança pequena, a não dormir, não me levantar e nem comer, sem orar. Mais tarde conheci quem não começa o mês sem uma semana de oração ou o ano sem uma reunião especial agradecendo a Deus pelo que passou e pedindo um bom ano novo.

Não estou dizendo que orar seja errado. De modo algum. As Sagradas Escrituras estão cheias de exemplos de homens de oração, a começar com o próprio Senhor Jesus. Vão mais longe: são claras em ordenar o quase incompreensível: “Orai sem cessar” (1Ts 5.17). Entretanto uma oração pode ser abominável como o texto acima nos garante.

O Senhor Jesus também condena as orações repetitivas: “E orando, não useis de vãs repetições, como os gentios; porque presumem que pelo seu muito falar serão ouvidos” (Mt.6.7).

Porém, além de não ser ouvida, como as orações cheias de repetições tolas, o texto fala de uma oração, que aos olhos de Deus é abominável, e deixa claro que ela tem essa qualidade em função de ser feita por quem não considera a Lei de Deus.

O original se refere à Torah - o que nós protestantes chamamos de Pentateuco (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio) - porém, à luz do Evangelho, entendemos como uma referência direta à totalidade das Sagradas Escrituras: consequência daqueles cinco benditos livros.

Mas, deve ficar claro que “tapar os ouvidos à Lei” não significa apenas gesto físico. Aqui temos uma figura de linguagem em que a coisa material é tomada por sua função.

O texto está dizendo que a pessoa que não orienta seu viver pelos ensinos da Escritura, ao orar, está cometendo uma abominação diante de Deus. Isso fica óbvio quando se pensa em alguns aspectos. Por exemplo:

1. Pedidos que contrariam os desígnios de Deus. Na maioria das vezes não conhecemos a vontade de Deus a respeito de nossa própria vida - o Apóstolo Paulo pediu que lhe fosse tirado o “espinho da carne” e ouviu “minha graça te basta” - mas sabemos a vontade geral. Deus não deseja que quebremos seus mandamentos. Portanto pedir sua bênção sobre uma união desonesta, ou sobre um negócio ilícito, por exemplo, é abominação.

2. Orar com outra intenção que não seja falar com Deus. Há quem ore para ser visto pelos outros ou para predispor-se a alguma ação.

No primeiro caso, nosso Senhor Jesus condenou tal prática com tanta veemência que parece que era corriqueira em seus dias. Por sua descrição no Sermão do Monte, parece que alguns ficavam em pontos estratégicos para serem vistos orando.

Já conheci quem aproveitasse a oração para elogiar a si próprio ou fazer um verdadeiro sermão com exortação.

Há como documentar algo semelhante: No livro Este Mundo Tenebroso (não é uma recomendação de leitura. Pelo contrário: se não leu, não leia) há uma oração de uma velhinha, muito marcante no enredo, que se dirige a Deus cândida e fervorosamente, mas logo começa a repreender a Satanás. Quando li, fiquei pensando com quem ela estava realmente falando.

No segundo caso, há quem ore para si mesmo. É o que ensinam muitos pregadores do evangelho da prosperidade. Dizem: Repita o que você quer. Exija com detalhes e você conseguirá ver seu desejo realizado. Isso sequer pode ser chamado oração.

Nossa oração deve ser feita com a simplicidade e confiança de uma criança que pede algo a seu pai. Não um moleque traquinas e mimado, mas uma criança amável e amada. Do contrário Deus a terá por abominável.

sábado, 14 de janeiro de 2012

Os lábios de Isaías

O profeta Isaías viveu nos dias em que o Reino do Norte foi levado cativo pelos assírios, cerca de cem anos antes que os babilônios os derrotassem e levassem Judá para o cativeiro (época em que profetizava Jeremias).

Desde que o povo quis ser governado por reis, Deus lhes enviou profetas que deveriam lembrar-lhes suas leis, mas, não raro esses profetas se corrompiam e faziam o que os poderosos desejavam.

Isso tornou-se mais comum após Jeroboão ter dividido o Reino separando as 11 tribos, que passaram a seguir seus próprios caminhos. É nesse contexto que se pode entender a desavença do profeta Amós - que era contemporâneo de Isaías - com o sacerdote Amazias: “Então, Amazias disse a Amós: Vai-te, ó vidente, foge para a terra de Judá, e ali come o teu pão, e ali profetiza; mas em Betel, daqui por diante, já não profetizarás, porque é o santuário do rei e o templo do reino. Respondeu Amós e disse a Amazias: Eu não sou profeta, nem discípulo de profeta, mas boieiro e colhedor de sicômoros. Mas o SENHOR me tirou de após o gado e o SENHOR me disse: Vai e profetiza ao meu povo de Israel” (Am 7.12-15).

Porém, nem mesmo vendo o destino deles, Judá fez diferente. Os governantes de lá também usavam os sacerdotes e os profetas para conduzir o povo conforme seus interesses. Os profetas, à serviço do status quo traziam uma “palavra boa”. Uma palavra de ânimo. Contra ele o SENHOR disse: “porque desde o menor deles até ao maior, cada um se dá à ganância, e tanto o profeta como o sacerdote usam de falsidade. Curam superficialmente a ferida do meu povo, dizendo: Paz, paz; quando não há paz. Serão envergonhados, porque cometem abominação sem sentir por isso vergonha; nem sabem que coisa é envergonhar-se.” (Jr 6.13-15).

Em outro lugar: “Coisa espantosa e horrenda se anda fazendo na terra: os profetas profetizam falsamente, e os sacerdotes dominam de mãos dadas com eles; e é o que deseja o meu povo” (Jr 5.30-31).

Embora os dois último textos sejam da época de Jeremias - cerca de cem anos depois - foi em um contexto assim que viveu o profeta Isaías.

Certamente ele era um sacerdote ou jamais teria acesso ao Templo onde viu o SENHOR, conforme relatou no capítulo 6 de sua profecia. E o estilo de seu texto, seu vocabulário rico e sua habilidade com as palavras revelam que era muito hábil com as letras. Provavelmente era também escriba.

Isaías, como mais tarde aconteceria a Zacarias, pai de João Batista, teve uma visão dentro do templo: “No ano da morte do rei Uzias, eu vi o Senhor assentado sobre um alto e sublime trono, e as abas de suas vestes enchiam o templo. Serafins estavam por cima dele; cada um tinha seis asas: com duas cobria o rosto, com duas cobria os seus pés e com duas voava. E clamavam uns para os outros, dizendo: Santo, santo, santo é o SENHOR dos Exércitos; toda a terra está cheia da sua glória. As bases do limiar se moveram à voz do que clamava, e a casa se encheu de fumaça” (Is 6.1-4).

Releia pausadamente e veja o cuidado do profeta em descrever a majestade do que viu. Agora, veja qual é a primeira reação dele: “Então, disse eu: ai de mim! Estou perdido! Porque sou homem de lábios impuros, habito no meio de um povo de impuros lábios, e os meus olhos viram o Rei, o SENHOR dos Exércitos!” (Is 6.5).

O que para muitos seria a maior bem-aventurança - ver o SENHOR - para Isaías era uma perdição. E esclarece a razão: seus lábios. Localiza imediatamente seu pecado e Deus concorda com seu diagnóstico.

Em Israel daqueles dias pecar com os lábios poderia ser qualquer coisa: desde fofoca, a conversas torpes. Tudo isso era prática corriqueira e tolerada. Porém, nos lábios de um sacerdote, especialmente de um que exercia um ministério profético, expondo a seus pares e ao povo à Lei do SENHOR, dificilmente seu pecado seria outro que não a adulteração da mensagem do SENHOR.

De lábios purificados pelos seres flamejantes (a isso alude a palavra Serafins, que só aparece aqui) com uma brasa viva tirada do próprio altar, perdoado seu pecado e tirada sua iniquidade, Isaías é comissionado pelo Senhor para ser sua boca. Sua mensagem terá de ser tão crua até restar apenas a santa semente.

Notou a inversão? O que é cantado por muitos como bem-aventurança (“Quero tocar-te, tua face ver...” Ou “Teu rosto vendo, nada temerei...”) para Isaías era sinal de perdição, pois seu pecado gritava mais alto.

Mas ainda há outra inversão: Pregar para espantar a falsa semente? Pregar até restar apenas os que realmente foram chamados por Deus?

É isso mesmo. A última coisa que se pode fazer - e que estamos fazendo hoje - é confundir pregação com publicidade e propaganda. Pregação foi o instrumento usado por Deus, para, através do profeta Isaías, separar o seu povo. Não pode ser diferente hoje.

sábado, 7 de janeiro de 2012

O dia perdido de Samoa


Você se lembra de que na virada do ano de 2006 os relógios do planeta foram ajustados em 1 segundo? Nesta virada para 2012 aconteceu outra coisa peculiar: Samoa perdeu a sexta-feira!

Samoa é um arquipélago a leste da Austrália que desde o século 18 tem sido objeto de exploradores holandeses e franceses. Apenas no século 19 houve um esforço missionário consistente feito pela London Missionary Society. Sempre foi considerado ponto estratégico, no mínimo para reabastecimento, e durante a Segunda Guerra Mundial a base militar americana lá instalada, no Porto de Pago Pago, teve grande importância para os exércitos aliados do Pacífico Sul. Recentemente, nos anos das viagens à lua, essa mesma base foi importante no resgate de 5 missões do programa Apolo.

Essa ilha menor, Tutuila, fortemente ligada aos Estados Unidos, seja pela base naval seja pelo comércio com o Havaí, atraía as duas maiores, Savai’i e ‘Upolu, vulgarmente conhecidas como Samoa Ocidental, geograficamente mais próximas da Austrália e da Nova Zelandia, mas temporalmente distantes um dia inteiro: Elas estavam na zona de Tempo do Havaí e, portanto, no fim do dia. Se você viajasse de Samoa a Tonga ou a Fiji (menos de duas horas de avião) chegaria lá no dia seguinte. Se fosse o inverso ficaria um dia mais novo pois chegaria no dia anterior.

As Ilhas de Samoa eram as últimas a receber, por exemplo, a comemoração do Ano Novo. Enquanto a Ilha de Tonga e Fiji (há poucos quilômetros de distância), a Nova Zelandia a Austrália, toda Ásia, toda Europa, o Canadá os Estados Unidos, o Brasil, os países Andinos e até o Alaska recebiam antes o Ano novo, apenas o Havaí e Samoa comemoravam juntos por último.

Mas o que aconteceu não foi uma questão de comemoração. Com o incremento das relações com a Austrália e nova Zelândia, os samoanos, alguns anos atrás, mudaram a mão de direção das ruas (e os carros passaram a ter volante do lado direito) e agora entraram no fuso horário deles também. Só que para fazer isso tivera de perder um dia: perderam uma sexta-feira.

Mas por que isto é tão importante? Para mostrar a força das convenções. Repare bem: Dirigir do lado direito ou esquerdo da rua, ou estar em uma ou outra faixa de tempo é apenas uma convenção.

Esta é uma das razões - talvez a menor delas - pelas quais, nós, de Fé Reformada, dizemos que o importante é manter o princípio de santificar ao Senhor um dia em cada sete: é impossível dizer que o sábado que vivemos hoje é o mesmo dia que Jesus passou no túmulo. Pior: é impossível dizer que seja o mesmo que Deus descansou após haver criado todas as coisas.

Se você for observar algum dia em especial e santifica-lo ao Senhor, saiba, que a escolha de tal dia passa por, no mínimo, uma convenção humana. Que dia observaremos? O do Jardim do Éden (que devia ficar nas bandas do oriente médio)? Ou o dia do local que estamos? Ou se morássemos em Samoa, antes da mudança de fuso horário, o dia anterior?

Quando eu falei sobre os muitos calendários que já obedecemos (Boletim de 31/12/2007 - aqui) mostrando assim essa impossibilidade, alguns argumentaram que só havia mudado o número do dia, mas o dia da semana era o mesmo. Pois bem: agora temos um caso concreto: os samoanos por perderem a sexta-feira estão comemorando o sábado e o domingo errados.

Precisamos entender claramente o que é o princípio (este imutável) e o acidente (este adaptável as necessidades).