sábado, 27 de outubro de 2012

Maior rigor

Nosso Senhor Jesus, decepcionado com a reação de Corazim e de Betsaida, garantiu que, no dia do juízo, elas serão julgadas com maior rigor do que Tiro e Sidom. Os judeus de então devem ter entendido melhor do que nós hoje a gravidade desta ameaça, pois não estamos tão familiarizados com as malfeitorias delas.

O mesmo foi dito de Cafarnaum e Sodoma. Porém, a história de Sodoma nós conhecemos. Tornou-se proverbial.

Mas, voltando a Tiro e Sidom, para conhecer-lhes as maldades, é necessário estudar razoavelmente bem o período que vai do profeta Malaquias até os dias de Jesus. Quanto a Corazim, Betsaida e Cafarmaum, o próprio Jesus nos dá o traço comum pelo qual elas sofreriam maior rigor: a incredulidade: “Ai de ti, Corazim! Ai de ti, Betsaida! Porque, se em Tiro e em Sidom se tivessem operado os milagres que em vós se fizeram, há muito que elas se teriam arrependido com pano de saco e cinza” (Mt 11.21). E “Tu, Cafarnaum, elevar-te-ás, porventura, até ao céu? Descerás até ao inferno; porque, se em Sodoma se tivessem operado os milagres que em ti se fizeram, teria ela permanecido até ao dia de hoje” (Mt 11.23).

Estes textos levantam questões difíceis, como: por que não se fez em Sodoma, em Tiro e em Sidom os mesmos milagres que foram feitos em Corazim, Betsaida e Cafarnaum, se era sabido que elas haveriam de se arrepender? Por que foram preteridas? Mas este é um assunto para outra ocasião, pois o que me atrai mais nesta afirmação do Senhor é a razão pela qual ele haverá de aplicar maior rigor em seu julgamento.

Creio que é necessário destacar dois pontos:

Primeiro: A posição de Cafarnaum parece ser pior, já que o Senhor Jesus além de fazer nela muitos milagres manteve lá uma casa (provavelmente alugada, ou emprestada) onde podia ser achado. Veja Mc 2.1: “Dias depois, entrou Jesus de novo em Cafarnaum, e logo correu que ele estava em casa”.

Segundo: Os milagres tinham a única função de confirmar a mensagem anunciada. Observe que o mesmo critério de maior rigor é prometido às casas e às cidades que rejeitassem a mensagem do Evangelho transmitida pelos discípulos de Jesus: “Se alguém não vos receber, nem ouvir as vossas palavras, ao sairdes daquela casa ou daquela cidade, sacudi o pó dos vossos pés. Em verdade vos digo que menos rigor haverá para Sodoma e Gomorra, no Dia do Juízo, do que para aquela cidade” (Mt 10.14-15).

Um dia desses, depois de uma das palestras do Encontro da Fé Reformada em Vitória (ES), em uma agradável conversava com meu hospedeiro, que passou da meia noite, discutíamos exatamente esse ponto. Nosso Senhor está se referindo especificamente a rejeição de sua Revelação e no caso agravada pelos sinais que a comprovavam.

Quão digna de maior rigor é nossa geração – pensamos – já que a Revelação divina está sendo acintosamente rejeitada diante de comprovações mais pungentes do que milagres?

Dou apenas um exemplo: Até 1950 o texto hebraico mais velho que tínhamos era composto de manuscritos feitos na idade média (entre 900 e 1000 d.C.). Em 1946 um adolescente, que procurava suas cabras extraviadas, achou uma caverna com dez vasos de barro que continham rolos dos livros do Antigo Testamento. Foi a primeira das diversas cavernas em que partes maiores ou menores de todos os livros do AT, com exceção de Ester, foram encontrados. Hoje você pode vê-los até na internet e atestar a fidelidade do conteúdo do texto que sempre usamos.

Hoje a Bíblia está por todos os lugares. Conversando com meu amigo listamos rapidamente as versões à nossa disposição em tablets, smartphones, celulares e edições gráficas diferentes. Legíveis, audíveis (algumas nas línguas originais) e até encenadas. Ninguém pode alegar que não tem condições de adquirir uma Bíblia já que ela é distribuída gratuitamente em hospitais, escolas, hotéis, cadeias... (Dia desses um membro de minha igreja me procurou para me alertar de que se alguém dissesse que o viu saindo de um motel com outro homem, eu não me assustasse pois eles tinham começado a distribuição nos quartos de motéis também).

Sodoma, Gomorra, Tiro e Sidom receberam a Revelação que todos recebem: a Revelação Geral, que é própria da criação, e por essa razão são indesculpáveis perante Deus.

Sodoma teve contato com Ló e o rei de Tiro fez aliança e comerciou com Salomão, mas não consta dos registros bíblicos que tenham recebido ensinamentos como nossa geração recebe e continua recebendo. Por isso nossa geração, à exemplo das cidades que nosso Senhor imprecou, sem dúvida, receberá maior juízo.

Mas e o texto que se refere a casas? Quantas Bíblias há na sua? Elas orientam a vida de sua família ou apenas estão lá? Elas orientam suas decisões ou enfeitam sua estante? Com que rigor você acha que será julgado diante do Senhor?

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Um pecado leve?

Nascido em um lar protestante sempre ouvi que pecado é pecado e não existe pecadinho e pecadão. Todos são iguais diante de Deus. Esse ensino é parcialmente explicado pelo contexto em que os protestantes se afirmaram no Brasil, sofrendo forte oposição da Igreja de Roma que ensinava, e ainda ensina, que há pecados mortais e pecados veniais (dignos de vênia, como dizem nossos juristas. Dignos de desculpas).

O ensino é parcialmente explicado também pela leitura fora da “analogia da fé” do seguinte texto de João: “Se alguém vir a seu irmão cometer pecado não para morte, pedirá, e Deus lhe dará vida, aos que não pecam para morte. Há pecado para morte, e por esse não digo que rogue” (1Jo 5.16). Porém o texto não está falando da qualidade intrínseca do pecado, mas da posição em que o pecado está na vida da pessoa, pois todos os pecados demandaram a morte de nosso Senhor Jesus Cristo. Neste aspecto todos são iguais.

Porém, falando em pecado, há que ressaltar:

Primeiro: Nosso catecismo diz que alguns pecados são mais odiosos diante de Deus do que outros, em razão de 1) quem os comete, 2) de quem é ofendido, 3) da qualidade da ofensa e 4) das circunstâncias em que a ofensa foi cometida. Quem se interessar mais por essas qualificações pode encontrar uma exposição farta nas perguntas 150 e 151 do Catecismo Maior de Westminster. Entretanto estão em minha pauta como assuntos futuros.

Segundo: Quando olhamos especificamente o Antigo Testamento encontramos diversas palavras traduzidas por pecado, mas, por peculiaridades comuns à língua hebraica, há nuança de sentido entre elas e uma delas é shagá que aparece, em formas derivadas, no Levítico quando se trata dos Pecados por Ignorância (veja Lv 4.2, 22 e 27).

O profeta Ezequiel usa essa mesma palavra para descrever o estado das ovelhas sem pastor, que simplesmente vão se afastando à medida que pastam: “As minhas ovelhas andam (Literalmente: ERRAM) desgarradas por todos os montes e por todo elevado outeiro; as minhas ovelhas andam espalhadas por toda a terra, sem haver quem as procure ou quem as busque” (Ez 34.6). Observe que o verbo andar aparece duas vezes, mas a segunda vez, em hebraico, está escrito literalmente “foram dispersadas”.

O profeta Isaías apresenta uma das razões para este tipo de pecado: a embriaguez: “Mas também estes cambaleiam (Literalmente: ERRAM) por causa do vinho e não podem ter-se em pé por causa da bebida forte; o sacerdote e o profeta cambaleiam (Literalmente: ERRAM) por causa da bebida forte, são vencidos pelo vinho, não podem ter-se em pé por causa da bebida forte; erram (Literalmente: ERRAM) na visão, tropeçam no juízo” (Is 28.7).

Salomão alerta: Deixar de ouvir a instrução leva a esse tipo de erro: “Filho meu, se deixas de ouvir a instrução, desviar-te-ás (Lit. ERRARÁS) das palavras do conhecimento” (Pv 19.27).

E em um assunto, que, pela prática ele conhecia muito bem, pergunta: “Por que, filho meu, andarias (Lit. ERRARIAS) cego pela estranha e abraçarias o peito de outra?” (Pv 5.20) e contrasta com o comportamento natural que é esperado do marido para com a esposa amada “Seja bendito o teu manancial, e alegra-te com a mulher da tua mocidade, corça de amores e gazela graciosa. Saciem-te os seus seios em todo o tempo; e embriaga-te (Lit. ERRA) sempre com as suas carícias” (Pv 5.18-19).

Veja bem: É uma só palavra, porém sua tradução, que tem como núcleo errar, demanda uma série de aplicações diferentes. Alguém mais afoito pode dizer então: é um pecado tolerável, já que uma possibilidade de tradução é “erro cometido sem intenção”. Entretanto, volte ao capítulo 4 do Levítico e observe que mesmo este erro demandava o sacrifício de uma vítima. Ou seja: por este tipo de erro nosso Senhor morreu. O salário deste tipo de pecado também foi a morte. Neste sentido ele é igual aos demais.

sábado, 6 de outubro de 2012

Muito Obrigado

No distante Século XII, os nobres de Portugal recebiam o tratamento de “vossa mercê” (mercê significando graça ou concessão). Com o passar dos anos mudou-se para “vossemecê”. Anos mais tarde, “vosmecê”; até que em 1813 já se encontra registrada a forma “vosse”; e Camilo Castelo Branco (1825 - 1890) registra “você”. Durante meu período de vida já vi “ôcê” e “cê”. Sem contar com as variantes da internet “vc” e “c”.

Há não muito tempo também era costume agradecer algo, ou um favor recebido com uma expressão do tipo: “... por isso sou grato e lhe fico muito obrigado”. Hoje dizemos apenas “obrigado” (ou apenas “brigado”). Observe que a expressão de agradecimento estava na primeira parte da frase e a segunda parte era um reforço em que se garantia mais do que gratidão. Garantia um empenho, uma retribuição, uma obrigação tida para com quem fez algo que foi muito apreciado.

Neste contexto, pergunta o salmista: “Que darei ao SENHOR por todos os seus benefícios para comigo? Tomarei o cálice da salvação e invocarei o nome do SENHOR” (Sl 116.12-13).

Mas, voltando a nossa língua. Embora eu creia que cada idioma possua suas peculiaridades, o Português se destaca. Eu não possuo um censo de todos os idiomas modernos, mas desconfio que o português seja o de léxico mais amplo. A Academia Brasileira de Letras classificou em seu vocabulário ortográfico quase 390 mil palavras, o que é mais do que o Inglês (o Merrian-Webster´s Collegiate Dictionary possui 165 mil entradas); do que o Francês (o Dicionnaire de l’Academie Fraçaise a la Letre possui cerca menos de 50 mil), e descontando as palavras compostas que se pode formar na língua alemã um dicionário básico terá uma quantidade semelhante de entradas.

Não creio que essas línguas sejam lexicalmente mais pobres que o Português e apesar dessa abundância de palavras que os brasileiros tem a sua disposição nossos universitários, bem formados, dominam apenas 5 mil dessas palavras, em média. E, digo com tristeza, que um dos problemas que mais afligem a nós pastores é fazer com que as traduções bíblicas sejam corretamente entendidas. Observe, apenas como exemplo, Colossenses 1.12:

Na versão mais usada (Almeida Atualizada) lemos: “dando graças ao Pai, que vos fez idôneos à parte que vos cabe da herança dos santos na luz”. Mas, o que significa exatamente “idôneos à parte que nos cabe da herança”?

A versão Corrigida, a Corrigida Fiel, a Versão Contemporânea, bem como a Almeida Portuguesa, parecem facilitar a leitura com: “idôneos para participar da herança”. Porém complicam mais, pois tiram a idoneidade de um determinado ato e a transformam em qualidade genérica.

A Nova Versão Internacional simplifica ao extremo dizendo apenas “nos tornou dignos de participar”. E a Século XXI opta por “capacitou a participar”.

Esse é um caso em que o idioma grego, por sua natureza, exige muito mais do que o nosso é capaz de fornecer com uma simples palavra, pois a ideia vai desde o capacitar a algo, ser suficiente para alguma realização, ser adequado, ou caber, até equipar, dar poderes, investir de poderes, para que participemos da herança que está reservada a todos os santos.

Obviamente é mais do que um problema de tradução, mas atinge o infortúnio que se abate sobre nós, a respeito do qual estou tentando falar.

Se lembra de como “vossa mercê” virou “cê” e de como surgiu o simples obrigado? Este fenômeno pode ser explicado pela lei do menor esforço. Mas, paralelamente, cada vez mais, se usa uma mesma palavra, com os mais diversos significados, além de seu significado normal. Hoje qualquer dicionário trará como significado de “legal” uma coisa boa, mas antes dos anos 60 “legal” era apenas alguma coisa que estava de acordo com a lei. Em nosso caso, “obrigado”, que significava originalmente uma declaração de obrigação, hoje é uma expressão de agradecimento.

Dessa forma não é de se estranhar, que nós que professamos receber de Deus tudo pela graça, nos dirijamos a ele e digamos “Muito obrigado Senhor”!

Eu ainda acho tremendamente estranho, e teologicamente é errado, mas linguisticamente é explicável. E no fundo é um grande contrassenso que alguém que declara viver pela graça, dirija-se a Deus e lhe diga obrigado. Como obrigado? Tudo foi pago na cruz. Em que estamos obrigados? Em nada! O que temos a fazer? Apenas em receber a sua graça. Tomar o cálice de sua salvação como nos disse o salmista.