domingo, 24 de dezembro de 2006

O Rei, os magos e os guardas

Sempre gostei de escutar as histórias do Elias. Apesar de nossos encontros serem tão curtos, como duas páginas, ele gostava de chamar-se peregrino. Acho que era por outro motivo.

Um dia ele me lembrou de que, quando menino soube de um grande confusão. Jerusalém ficou repentinamente alvoroçada com uma caravana que entrava.

Caravana grande, das que atravessam o deserto e alguns se destacavam como líderes: "magoi", como diziam aqueles que arranhavam a língua grega.

Eles eram descendentes dos antigos alunos de Daniel, que há séculos fora levado ainda jovem para Babilônia, onde, por ter mostrado grande sabedoria, havia sido nomeado chefe deles. Eles sabiam contar o tempo olhando o movimento das estrelas.

Esse Daniel era aquele que, adivinhando e interpretando um sonho do Rei Nabucodonozor, salvou a vida de seus companheiros e dos que já eram chamados "magoi" antes dele, e que, por tentarem enganar o rei, haviam sido condenados a morte.

Foi nessa época que Daniel profetizou quando o Messias havia de vir, e marcou nos calendários deles a época em que isso ocorreria: Uma estrela em determinado posição no céu.

Tão logo a estrela apareceu, os que ainda lembravam dessa profecia, começaram as conversas sobre o que fazer. Depois de algum tempo decidiram ir conhecer o menino e homenageá-lo com presentes. Daí a caravana.

O Elias não sabia bem quanto tempo levaram para atravessar o deserto. Mas atravessaram. E quando chegaram a Jerusalém falando que o rei dos judeus havia nascido o alvoroço se instalou. Não fazia muito tempo, Herodes, que reinava em Jerusalém, havia matado a própria mulher e um filho por suspeitar que conspiravam para tomar o trono.

Raposa velha, Herodes não demorou a saber dos próprios conselheiros onde, especificamente, as profecias diziam ser o lugar do nascimento. Ele também conhecia a profecia, mas não sua data. Belém: foi a resposta unânime.

“Vão adorá-lo e depois me digam onde é para eu ir também”. Disse Herodes aos “magoi” enquanto pensava: jogada de mestre. Depois pego todo mundo.

O Senhor Deus não permitiu que ele chegasse a tanto. Porém, todos souberam que os estrangeiros estavam mais atentos aos tempos de Deus do que os sacerdotes de sua própria casa.

Ouvi o Elias com atenção.

Eu sempre escutara falar dessa história, mas com o passar do tempo ela tinha se tornado tão fantasiosa que já se falava que apenas 3 homens haviam atravessado o deserto com tantos presentes. Três tipos de presentes. Quem sabe a confusão não tenha começado aí.

De fato. Quando o Senhor assumiu nossa natureza, estrangeiros vieram de longe atestar seu nascimento trazendo-lhe presentes. Curiosamente, quando ele ressuscitou, outros estrangeiros, que, a exemplo dos primeiros, não tiveram seus nomes registrados e sequer sabemos quantos eram, receberam bastante dinheiro para ficar calados sobre sua ressurreição.

Que ironia. Uns correm risco de vida e dão do que possuem para dizer bem alto: O Messias nasceu. Outros, com medo da morte e fascinados pelo dinheiro, calam-se diante de algo muito mais difícil – afinal que provas o menino tinha de ser o Rei do Judeus? Nenhuma. Só a estrela, que sequer foi percebida em Jerusalém, pois Herodes teve de perguntar aos "magoi" a data precisa em que ela aparecera.

Porém os guardas estavam diante de um sepulcro vazio, selado com uma pedra muito grande e foram testemunhas de um evento que os deixou assombrados – como mortos – mas o vil metal, que cala a maioria dos homens, calou a deles também, e ninguém gritou: O crucificado ressuscitou!

Magos e guardas... quando me encontrar com o Elias já temos o que conversar.


* Agradeço ao Rev. Elias Medeiros sua pesquisa sobre os 'magoi'.

sábado, 16 de dezembro de 2006

Quando as palavras já não significam o que significavam

Com tanto para falar sobre a encarnação do Senhor e de como ele se tornou um de nós, preciso falar hoje sobre o caminho em que peregrinamos. Então, vamos lá.

-*-
Há uma semana recebi um cartaz para colocar no mural. Azul claro, com um desenho estilizado de uma pomba no canto superior esquerdo, dá toda ênfase às palavras FRUTO DO ESPÍRITO escritas em estilo Vivaldi com letras douradas, bem rebuscadas.

Logo veio a minha mente a Carta aos Gálatas. Afinal, ali estava uma pomba (tradicional símbolo bíblico para o Espírito Santo desde o Batismo de Jesus) e, como na Bíblia, a palavra estava no singular: Fruto! Não frutos.

“Amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão e domínio próprio”? Não: Ballet, Jazz, Circo, Street Dance e Dança Contemporânea. Que podem até ser frutos de um espírito amante das artes, mas nunca serão o FRUTO DO ESPÍRITO de quem assumiu nossa natureza.

Preciosismo lingüístico? Não. Alerta contra a polissemia das palavras que, fora de seu sentido, passam a servir de recursos de marketing. Bem intencionado? Pode ser. Blasfemo? Sem dúvida.

-*-
Duas semanas atrás, após uma série de curvas na estrada que leva à BH, duas crianças, que brincavam alegres durante toda a viagem, ficaram repentinamente quietas. Pai experiente de duas, tratei logo de puxar minha mala para o outro lado. Não demorou muito e as golfadas de vômito vieram. Vieram acompanhadas das imprecações da avó, que até então cuidou deles com desvelo.

As golfadas eram acompanhadas por exclamações assim: “ô bênção”, “esse menino(a) é uma bênção”, “o sangue de Jesus tem poder”, “ah, Jeová, tem piedade”, etc.

Saí desolado: O cheiro nauseante do vômito e meus sapatos pisando nele, eram nada perto do que ecoava e repetia-se em meus ouvidos.

Perdi a paciência: “Minha senhora, pelo simples vomitado das crianças a senhora invoca o sangue de Cristo e chama de bênção aquilo que no fim a senhora queria chamar de outra coisa”?
“Melhor do que dizer palavrão”, respondeu ela.

“Mas a Senhora os disse. E disse pior. Pecou duas vezes, pois além de dizê-los ainda os fez com o nome do Senhor. Seria melhor não dizer nada. Toda criança, sob essas circunstâncias, costuma vomitar”.

Exercício explícito de “chatice”? Não. Absolutamente não: “Ai dos que ao mal chamam bem e ao bem, mal; que fazem da escuridade luz e da luz, escuridade; põem o amargo por doce e o doce, por amargo!”

-*-
Queremos ser mais motivados a vir às reuniões da Igreja! Dizia, do alto de sua idade, uma senhora crente, de cuja piedade já me servi muitas vezes como exemplo. Talvez saudosa das estrelinhas que ganhávamos quando criança, todas as vezes que trazíamos a revista e a Bíblia à Escola Dominical, ou, quem sabe, precisasse daquele ânimo dos comerciais “seus problemas acabaram”, que repetem à exaustão as qualidades de um produto, sempre entrecortado pelo refrão “ligue já” ou “se você ligar agora...”.

Eu não sabia o que responder – as vezes fico abestalhado diante de algumas situações – e acho que não respondi. Mas fiquei pensando em como as comunicações entre as pessoas estão se deteriorando: lança-se mão dos textos sagrados para se fazer propaganda. Reclama-se de vômito de criança chamando-o de bênção. Confunde-se a tarefa de quem Deus chamou para expor sua Palavra com a de um publicitário.

-*-
Nossa peregrinação está chegando ao fim. Dizíamos “passarinhos, belas flores, querem me encantar”, mas refutávamos, “adeus terrestres esplendores”. Hoje temos de dizer que quizílias e exemplos mundanos nos impedem de ir mais rápido, de subir às montanhas da fé, de onde avistamos os muros fulgurantes da Jerusalém celeste.

Irmãos: lançamos mão de um arado. Não olhemos para trás.

sábado, 9 de dezembro de 2006

Entre a Manjedoura e o Túmulo (b)

Para nascer na manjedoura nosso Senhor esvaziou-se de si mesmo. Deixou de lado, voluntariamente, alguns dos atributos que o caracterizavam como Deus - por exemplo, a onipresença - e se fez carne. Passou a compartilhar a natureza do que ele mesmo criara. Passou a sujeitar-se ao que ele mesmo estabelecera.

Para repousar no túmulo nosso Senhor abriu mão, voluntariamente, de certos atributos que caracterizam os homens - por exemplo, o apego à vida - e a si mesmo se entregou. Injusta e passivamente sofreu a aplicação do castigo que era devido àqueles que o Pai lhe deu, e, finalmente, voluntariamente, rendeu seu espírito.

Sua manjedoura, emprestada de animais domésticos, teve suas palhas forradas pelas faixas em que foi envolto, mas não o reteve por muito tempo: quarenta dias depois foi levado à casa terrestre de seu Pai, onde, contemplado por fiéis, foi apresentado. Já havia recebido em seu corpo a única marca que era permitida a um judeu.

Seu túmulo, emprestado de um homem rico, recém cavado na rocha, também foi forrado - com o lençol de linho que outro José usou para amortalhá-lo - e também não o reteve por muito tempo. Novamente, quarenta dias depois compareceu à casa do Pai. Desta vez à casa celeste. Desta vez, além da própria marca da Aliança, apresentou ao Pai todas as marcas que adquirira dos que ele mesmo representou.

Entre a manjedoura e o túmulo fez muitas coisas. Aprendeu com seu pai terrestre a arte de trabalhar a madeira, e a trabalhou. O que fez nessa época ainda saberemos, porém temos certeza de que não foi sem motivo que ficou conhecido como “construtor”.

Entre a manjedoura e o túmulo, quando completou os 30 anos necessários, chamou a si aqueles que ele mesmo quis e os treinou para completar o que ele iniciou de uma vez por todas: os fez alicerces de sua nova construção.

Entre a manjedoura e o túmulo outras madeiras e outros pregos não lhe foram instrumentos dóceis, porém eram parte importante dessa construção maior: a casa eterna: verdadeira cidade para todos aqueles por quem morreu.

Enquanto as festas deste mês de dezembro nos lembram a manjedoura, não esqueçamos que para apreciá-la precisamos entender corretamente o significado do túmulo. Ela foi apenas o início.

O brilho característico da tradição natalina será falso, supersticioso e indigno do Senhor de todas as coisas, se ele não tiver nascido em nosso coração (que pode ser tão acanhado como uma manjedoura, afinal, ele não liga pra isso) nem estivermos dispostos a dividir com ele seu túmulo: mortos com ele para o mundo, mas vivos, com ele, para Deus.

Indizível alegria! Nos alegremos muito! Afinal ele trilhou, antes de nós, o caminho entre a manjedoura e o túmulo e nesse caminho há uma cruz. Quando ela nos parecer pesada, ou o caminho se mostrar árduo, lembremos das benditas palavras: “não temerei mal algum, pois tu estás comigo. O teu bordão e o teu cajado me consolam”.

Glórias a Deus. Manjedoura que é, meu coração recebeu o Senhor!

quinta-feira, 7 de dezembro de 2006

Do jardim à cidade

E plantou o SENHOR Deus um jardim no Éden,
na direção do Oriente,
e pôs nele o homem que havia formado.
Gênesis 2:8


O homem recebeu de Deus um jardim. Não era um matagal, pois a palavra jardim já indica certa organização das plantas, porém, com certeza carecia de cuidados.

A revolta do homem contra Deus prejudicou o jardim, pois o castigo que Deus impôs sobre ele afetou também tudo aquilo sobre o tinha recebido domínio.

Embora haja muitas definições do que seja cultura, eu ainda prefiro pensar o seguinte: um rio intacto é obra divina, já um mero canal, ou um represamento mínimo é expressão de cultura. Ou seja: produto da cultura humana é qualquer interferência na criação divina. Não limito cultura às artes (como as entendemos hoje), ou às criações intelectuais. Na obra do artesão (quem aplica a arte com os dedos ou com ferramentas que vão da enxó ao bisturi) se vê a presença de conceitos culturais.

O homem interferiu na criação divina antes do pecado ao dar nome aos animais. Porém, a maior parte de suas ações culturais aconteceu após pecar.

Lembre-se de que nos primeiros tempos a interferência humana foi tão danosa, que Deus agiu drasticamente diversas vezes: dilúvio, Babel, etc.

Não posso concordar com quem diz que a cultura é neutra, pois, manchada pelo pecado, tudo o que deriva dela traz essa mancha. Eis a razão porque o jardim confiado ao homem nunca poderá ficar de acordo com o gosto de seu dono: Deus. Porém, essa impossibilidade não exime o homem de sua obrigação: Ele TEM de cuidar do jardim de Deus. Ele TEM de lutar contra os cardos e os abrolhos.

Essa obrigação tem duas razões: a primeira é a obediência a Deus e a segunda é não esquecer que seu melhor, diante de Deus, não passa de “trapos de imundícia”.

A maior prova é que o Filho de Deus, ao assumir nossa natureza, tornou-se também um “agente cultural” como nós o somos. Porém, apesar de agir sobre um meio cultural afetado pelo pecado, ele, de si próprio, não tinha seu agir impregnado pela nossa cultura pecaminosa. Viveu como artesão. Conheceu a matéria prima, as ferramentas, os produtos que eram próprios da época, e atuou com habilidade.

Mas, você já se deu conta de que tudo o que Deus criou, quando for redimido, virá afetado pela cultura? Deus nos deu um jardim, mas no último dia receberemos uma cidade! A cidade é o aperfeiçoamento do jardim, e, como vimos o aperfeiçoamento é feito através da aplicação da cultura.

Entretanto a cidade que receberemos não é a cidade produzida por nossa cultura manchada pelo pecado, mas a produzida pelo supremo artesão. Aquele que prepara-nos lugar!

Não esqueça: é uma cidade – há bons aspectos na cultura – mas não é uma cidade qualquer. Não é feita por nós. Acaso teríamos tal capacidade? Ela não é diferente apenas em seus materiais constitutivos. Difere, acima de tudo, por sua execução. A tal ponto agrada a Deus que é chamada de Noiva.

Recebemos um jardim e não demos conta de cuidar dele, nem daremos. Vivemos na esperança de receber uma cidade. O conceito que transforma o jardim em uma cidade, por assim dizer, é nosso. Porém, não foi executado por qualquer de nós, mas pelo melhor de nós. Aquele cujas mãos jamais fizeram coisa alguma que desagradasse ao Pai. Aquele que manteve a pureza da capacidade cultural delegada ao homem e a usou para glorificar ao supremo autor de todas as coisas.

Bendito seja seu nome.