sábado, 17 de março de 2012

Bem-aventurados

Ao pé da letra esta palavra exprime a qualidade de quem teve uma boa aventura. Entretanto, por uma dessas funções peculiares à língua portuguesa ela aponta mais para o estado e tempo presente da pessoa a que se refere sem considerar muito a aventura na qual teve sucesso no passado. Tanto é que o primeiro sinônimo que nos ocorre dela é “feliz”, quando na realidade deveria ser “bem sucedido”.

A palavra que está no Novo testamento é “Makarioi” e a Vulgata, no Século 4, a traduziu por Beati (Bem-aventurados ou felizes) de onde vem o termo popular “beato”.

Em Inglês, a Bíblia de Genebra , de 1599, a traduziu por Blessed (abençoados). A King James de 1611/1769, a The New American Standard Bible, de 1977, e a The New International Version de 1984, mantiveram Blessed.

Em Francês, a tradução conhecida como Louis Segond (1910) e a Bible en Français Courant de 1997 (Linguagem corrente) usam Heureuex (felizes).

Em Italiano, tanto a Nuova Diodati de 1991, ou a Nuova Riveduta de 1994, quanto a Católico Romana, San Paolo Edizione de 1995, traduzem por Beati (Abençoados).

Em Espanhol, tanto a tradução Reina-Valera do Século 16 quanto a Biblia de las Américas de 1986 usam Bienaventurarados (Abençoados).

Das dezesseis versões que possuo em português (incluindo Católicas Romanas), duas traduzem por felizes, uma por abençoados e outra por venturosos.

Cá entre nós, eu prefiro traduzir por abençoados (apesar de nesse texto continuar usando “Bem-aventurados”). São abençoados por já possuírem aquelas qualidades destacadas pelo Senhor pelas suas respectivas razões.

As Bem-aventuranças estão registradas em um estilo literário chamado paralelismo - e certamente foram ditas assim, pois esse era um recurso mnemônico de que se serviam os mestres judeus daquela época - onde a segunda parte de cada frase é separada da primeira parte e à ela de alguma maneira se refere.

Antes, convém dizer, que há quem veja oito e até sete Bem-aventuranças. Porém, eu prefiro a leitura convencional de nove. Faz mais sentido para mim:

Bem-aventurados os humildes de espírito,
porque deles é o reino dos céus.

Bem-aventurados os que choram,
porque serão consolados.

Bem-aventurados os mansos,
porque herdarão a terra.

Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça,
porque serão fartos.

Bem-aventurados os misericordiosos,
porque alcançarão misericórdia.

Bem-aventurados os limpos de coração,
porque verão a Deus.

Bem-aventurados os pacificadores,
porque serão chamados filhos de Deus.

Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça,
porque deles é o reino dos céus.

Bem-aventurados sois quando, por minha causa, vos injuriarem, e vos perseguirem, e, mentindo, disserem todo mal contra vós. Regozijai-vos e exultai,
porque é grande o vosso galardão nos céus; pois assim perseguiram aos profetas que viveram antes” (Mt 5.3-12).

De cara, uma primeira observação já pode ser feita: aos humildes de espírito é garantido o reino do céus. Aos que choram, consolo. Aos mansos, a terra. Aos famintos e sedentos, fartura. Percebeu? Parece que a segunda parte complementa por antítese a primeira. Valerá para todas? Esse é um modo de estuda-las.

Outra análise que pode ser feita é o tempo do verbo que exprime a recompensa.

O da primeira está no tempo presente (porque deles é o reino dos céus). O que indica certa concomitância de eventos.

Da segunda até a sexta o verbo está no futuro. Para mim, indica que a promessa realiza-se após a bem-aventurança. Como exemplo: O discípulo só será capaz de ver Deus (seja na eternidade ou nos eventos diários) se estiver limpo de coração.

Na sétima o verbo volta ao tempo presente (a promessa é igual à da primeira).

Porém, apesar de o verbo da última estar no tempo presente, definitivamente a promessa é feita a “um galardão nos céus”.

Para bem entender o Sermão do Monte, há que se começar entendo as Bem-Aventuranças. Elas são a chave.

sábado, 10 de março de 2012

Se a fé por vezes falha…

“Porque pela graça sois salvos,
mediante a fé;
e isto não vem de vós;
é dom de Deus;
não de obras,
para que ninguém se glorie”
Efésios 2.8-9

Recentemente faleceu um ateu mundialmente conhecido que em um de seus últimos discursos observou: - nunca vi quem, por mais que cresse na vida eterna não lutasse ferrenhamente para manter a vida atual. Eu também não.

Vou um pouco mais longe: Ser cristão não significa ter certeza automaticamente da salvação. Explico: Leia o versículo acima. Leia novamente. Observou? Não apenas a salvação, mas a fé - veículo através do qual nos vem a bendita graça da salvação - também é dom de Deus. Ninguém pode alegar ser merecedor da salvação ou ter o direito de ser salvo por possuir fé, pois desse modo a fé viraria uma espécie de “boa obra” que compraria a salvação.

A fé é um dom de Deus, porém as vezes quem a recebe ainda é um bebê (religiosamente falando) ou não dá muito valor a ela e não a cultiva como deveria fazê-lo.

Minha mãe sempre falava que o entusiasmo de meu pai quando eu nasci era tão grande que ele comprou uma enciclopédia pra mim. É claro que demorei muito a tirar proveito dela e se ela caísse em minhas mãos, em meus primeiros anos de vida, no mínimo ficaria toda rabiscada, para não dizer rasgada. Obviamente Deus não comete o mesmo erro de meu pai. Mas nós cometemos os mesmo erros de um bebê embora sejamos adultos.

Aos 30 anos ganhei de presente um bonsai lindo. Adornou meu escritório durante um mês e começou a ficar preto. Poucos dias depois morreu. Eu não tive o cuidado de o regar todos os dias. Obviamente Deus não comete o erro de esquecer-se de cuidar de nós, mas nós nos esquecemos de nutrir nossa fé e de alimentá-la diariamente.

Já vi cristãos, dos quais eu jamais duvidaria da fé que possuem, desconsolados diante da perspectiva da morte. Acho que os teólogos de Westminster já conheciam esse problema, do contrário não escreveriam essa pergunta/resposta (81) no Catecismo Maior:

Pergunta: Têm todos os crentes sempre a certeza de que estão no estado da graça e de que serão salvos? Resposta: A certeza da graça e salvação, não sendo da essência da fé, crentes verdadeiros podem esperar muito tempo antes de consegui-la; e depois de desfrutar dela, podem senti-la enfraquecida e interrompida por muitas perturbações, pecados, tentações e deserções; contudo nunca são deixados sem uma tal presença e apoio do Espírito de Deus, que os guarda de caírem em desespero absoluto.

Note que eles estão falando de salvos que não possuem certeza de salvação, mas que são protegidos pelo Espírito Santo do desespero absoluto.

Note também que eles ensinam que a fé pode ser enfraquecida e interrompida, por muitas perturbações, pecados, tentações e deserções.

Você se lembra da terceira semente da parábola de Jesus? Aquela que caiu sob os espinheiros? Ela está viva, mas os espinhos, que Jesus interpreta como “...os cuidados do mundo, a fascinação da riqueza e as demais ambições... (Mc 4.19)” a deixou infrutífera.

Talvez você se lembre da tristeza de Davi em que desesperado ele grita “Não me repulses da tua presença, nem me retires o teu Santo Espírito. Restitui-me a alegria da tua salvação e sustenta-me com um espírito voluntário (Sl 51.11-12)”, ou talvez da tristeza de Pedro.

Não fomos criados para morrer. Portanto é natural que a morte nos assuste e nos cause temor. Isto é a maior prova de que ainda somos pecadores. Salvos, remidos, porém ainda pecadores e sujeitos ao pecado. Dignos de seu salário: a morte (Eis a maior refutação dessa doutrina idiota que ensina de que o salvo não peca. Se não pecasse nunca mais morreria).

Creio ser correto, morrer em paz. Prolongar a vida apenas até onde os conhecimentos humanos permitem fazer sem torna-la vegetativa. De resto é sempre bom ouvir as palavras do Senhor: “Qual de vós, por ansioso que esteja, pode acrescentar um côvado ao curso da sua vida?” (Mt 6.27).

sábado, 3 de março de 2012

Pele por pele

“Pele por pele, e tudo quanto
o homem tem dará pela sua vida”
Jó 2.4

Por dever de ofício há quase 3 décadas tenho visto belíssimos exemplos de fé e muita manipulação dela. Porém, como filho de missionário, desde que me entendo por gente meu pai já me advertia contra os que, usando a terminologia de nosso Senhor, ele chamava de lobos e bem cedo aprendi que o melhor lugar pra se ver os lobos em ação é perto de um doente.

Por dever de ofício tenho acompanhado doentes terminais, tanto idosos quanto jovens, até o último suspiro. Tenho visto suas famílias gastarem tudo o que possuem e até se endividarem com tratamentos, que as vezes apenas prolongam o sofrimento. Quando prolongam, pois alguns, de tão estranhos, cobrem o coitado de ridículo, mas para prolongar sua vida ele é capaz de beber a própria urina.

Satanás sabia o que estava falando. Deus é que resolveu “apostar” em Jó.

O curso normal de nossa vida física é nascer, concluir a formação dos órgãos necessários à vida adulta, viver em certa estabilidade biológica durante um período propício a gerar filhos e então iniciar uma paulatina e constante degenerescência até a morte.

O curso normal de nossa vida espiritual é nascer, tomar conhecimento do mundo que nos cerca, adquirir noção do certo e do errado e, com ela, a convicção de que nascemos em pecado e em rebelião contra Deus, mas ele nos fez seus filhos em Jesus Cristo. Então, desenvolver os valores dessa filiação em tudo o que fizermos nesta vida até o dia em que entregarmos nosso corpo à morte e nos mudarmos provisoriamente para junto do Senhor Jesus onde aguardaremos o último dia.

Enquanto estivermos aqui, portanto, estamos sujeitos, no mínimo, à degenerescência do corpo. Isso é tão inevitável quanto a própria morte.

As promessas de vida eterna que encontramos nas Escrituras Sagradas serão totalmente cumpridas, como se ainda estivéssemos no Éden quando voltarmos para junto do autor da vida. Enquanto estivermos fora desse ambiente, em um mundo que luta para viver sem Deus, estamos sujeitos ao que nossos pais nos legaram: o que aprendemos na escola: entropia. Viver é um ato de nega-entropia.

A energia que usamos para lutar contra a entropia é extraída daquilo com que nos alimentamos e por uma série de reações com o meio ambiente e com o que fazemos (ar, luz, movimentos, etc...), que eu não tenho competência para explicar, essa energia mantêm nossa “máquina” funcionando. Máquina através da qual nossa alma se manifesta e com a qual interage. De tal modo que a afeta (“aformoseia o rosto” Pv 15.13) e é afetada.

Quando, por algum motivo, nosso corpo sofre alguma disfunção buscamos corrigir. Paulo recomenda a Timóteo que faça uso regular de um pouco de vinho devido a seus problemas estomacais (1Tm 5.23), e é documentado que os judeus de então se valiam de azeitonas como laxante, ou de melissa como calmante.

Jesus curou doenças para provar que era Deus. Não foi limitado por coisa alguma. Curou quem quis, quando quis e como quis. Curou mediante o pedido dos pais ou de um patrão. Exortou um pai a manter a fé enquanto dirigia-se a sua casa onde ressuscitou-lhe a filha. Interrompeu um cortejo fúnebre de samaritanos para devolver vivo o filho de uma viúva e chamou para fora do sepulcro um morto já em estado de putrefação.

Autorizou a seus apóstolos a fazerem o mesmo para que a mensagem deles fosse credenciada. Mas observe, que eles sofreram sérias limitações: Paulo deixou Trófimo doente em Mileto (Tm 4.20), nem acalmou a tempestade que os afligiu por dias em sua viagem à Roma (aliás é interessante observar que apenas o Senhor fez milagres sobre a natureza).

Entretanto para convencer que possuíam as palavras de Deus, os lobos sempre se apresentaram com poder de cura. Esse fenômeno não é novo. Os curandeiros não surgiram com o movimento pentecostal. Ele é tão velho quanto o surgimento do poderio centralizador da Igreja de Roma, que alega ter feito curas com o auxílio dos pregos da cruz e até pedaços dela; dos ossos dos muitos mártires, santos e profetas; de frascos com leite da mãe de Jesus, etc. Seus centros milagrosos não estão apenas em países atrasados do terceiro mundo como Aparecida no Brasil, eles estão também em Lourdes na França, Fátima em Portugal e nem é preciso falar da Itália.

Hoje os estudiosos estão divididos sobre a realidade dos milagres feitos pelos vários tipos de milagreiros. Mas não vou entrar nesse tema, continuo aguardando a cura de uma criança com paralisia infantil, ou de um cego de nascença, ou de um poli traumatizado por um acidente de carro. Gostaria muito de ver alguém esvaziar um CTI.

Em nenhuma das vezes que fui a uma farmácia comprar um analgésico o farmacêutico me recomendou que o tomasse “com muita fé”. Independentemente do que eu faça 30 gotas daquele analgésico são suficientes para sanar minha dor de cabeça. Não são assim os lobos. Eles dizem: “Receba a cura. Tome posse pela fé”. Se ela não ocorrer, respondem: “Você não teve fé”.

Eles não podem dizer como Pedro: “Não possuo nem prata nem ouro, mas O QUE TENHO, isso TE DOU: em nome de Jesus Cristo, o Nazareno, anda!” (At 3.6). Mas eles tem essa certeza: o homem fará qualquer coisa pela sua vida. Essa é a oportunidade que eles esperam.