sábado, 15 de janeiro de 2011

Aperfeiçoado (Parte final)

Estando ele em Jerusalém,
durante a Festa da Páscoa,
muitos, vendo os sinais que ele fazia, creram no seu nome;
mas o próprio Jesus
não se confiava a eles,
porque os conhecia a todos.
E não precisava de que alguém
lhe desse testemunho
a respeito do homem,
porque ele mesmo sabia
o que era a natureza humana.
(João 2.23-25)

Costumamos ler este texto pensando no conhecimento divino de Jesus. Entretanto, levando em conta o que eu escrevi nestes últimos domingos, gostaria de lhe convidar a pensar que, seus sofrimentos desde o berço, a rotina de uma vida corriqueira com poucos acontecimentos dignos de nota e a incompreensão familiar, contribuíram em muito para que ele também tivesse desenvolvido o discernimento no sentido humano: aquele com que diríamos a mesma frase a respeito de alguém.

Para o Senhor deve ter sido impressionante chefiar uma família de, pelo menos, seis irmãos – se, de fato, seu Pai morreu – assumindo as necessidades de casa através do trabalho da carpintaria.

Por favor, não pense em móveis. Talvez até ele os fizesse, mas o trabalho principal de um tekton (de onde vem nossa palavra arquiteto) era construir.

Ele deve ter levantado muitas colunas e assentado muitas vergas, umbrais e vigas. Preparado muitas coberturas para receber o enchimento de barro e betume que se usava então como telhado.

Quantas casas ele fez? Quantas empreitadas o pechincharam? Quantas seu coração generoso deixou barato? Quantos calotes levou aquele que estava destinado a levar o maior calote do mundo?

A chefia da oficina – e o perdão de eventuais devedores – deve ter sido o início dos desentendimentos com seus irmãos. Chefiar, perdoar e ser incompreendido está de acordo com sua índole e com sua missão. Lembre-se de que nós mesmos - que hoje sabemos de tudo - ousamos, por vezes discordar, de suas decisões.

Não obstante, seu trabalho continua sendo o mesmo de toda eternidade: preparar-nos lugar.

O Senhor se fez servo – servo dos servos – para que nós os verdadeiros servos fôssemos feitos filhos, “por isso, é que ele não se envergonha de lhes chamar irmãos” (Hb 2.11).

Eu espero que você tenha percebido minha intenção de mostrar, nesses quatro artigos, o quando nosso Senhor foi exposto às vicissitudes desta vida e o quanto isso o levou a entender nossas dificuldades ao ponto de poder interceder perfeitamente por nós.

É a isso que o escritor da Carta aos Hebreus chama de aperfeiçoar. Não que – como alguns doidos dizem – ele não fosse perfeito. Mesmo antes de adquirir nossa natureza, Ele era perfeito em tudo, mas para ser o verdadeiro Cordeiro de Deus ele tinha de se tornar semelhante a nós, e ele nunca havia sofrido o que o sábio chamou de: “enfadonho trabalho [que] impôs Deus aos filhos dos homens, para nele os afligir” (Ec 1.13).

Ele já era o sacerdote perfeito. Tornou-se, pelos sofrimentos, a oferta perfeita.

domingo, 9 de janeiro de 2011

Aperfeiçoado (Parte 3)

Recebo em aconselhamento muitas pessoas que culpam suas famílias por seus erros. Às vezes dizem: “pastor, com a família que tenho não dá pra levar uma vida cristã”.

Nosso Senhor também passou por problemas semelhantes e entende tais dificuldades. E por ter vivido tais problemas sabe até que ponto uma desculpa como essa é verdadeira.

Como toda família de então a família de Jesus esperava que ele, como filho primogênito resgatado aos quarenta dias quando seus pais o levaram ao templo, se casasse e constituísse sua própria família, para que os irmãos mais novos fizessem o mesmo.

Com a morte de seu pai - o que parece ter acontecido no início de sua juventude - isso era verdadeira obrigação, pois ao primogênito cabia cuidar da mãe e das irmãs solteiras. Afinal, para isso é que ele recebia metade da herança.

Entretanto, Jesus chegou solteiro aos 30 anos, abandonou a oficina, saiu de casa e foi morar em Cafarnaum. Marcos registra: “Então, ele foi para casa. Não obstante, a multidão afluiu de novo, de tal modo que nem podiam comer. E, quando os parentes de Jesus ouviram isto, saíram para o prender; porque diziam: Está fora de si” (Mc 3.20-21).

A atividade de Jesus causava certa vergonha a seus familiares. E se há dúvida sobre quem eram os parentes que vieram prender a Jesus, o restante do texto esclarece: “Nisto, chegaram sua mãe e seus irmãos e, tendo ficado do lado de fora, mandaram chamá-lo. Muita gente estava assentada ao redor dele e lhe disseram: Olha, tua mãe, teus irmãos e irmãs estão lá fora à tua procura. Então, ele lhes respondeu, dizendo: Quem é minha mãe e meus irmãos? E, correndo o olhar pelos que estavam assentados ao redor, disse: Eis minha mãe e meus irmãos. Portanto, qualquer que fizer a vontade de Deus, esse é meu irmão, irmã e mãe” (Mc 2.31-35).

Percebeu? Os parentes eram sua mãe (silêncio sobre seu pai), seus irmãos e irmãs.

João, o evangelista, cuja família tinha parentesco com a de Jesus, é mais explícito sobre essas lutas familiares: “Dirigiram-se, pois, a ele os seus irmãos e lhe disseram: Deixa este lugar e vai para a Judéia, para que também os teus discípulos vejam as obras que fazes. Porque ninguém há que procure ser conhecido em público e, contudo, realize os seus feitos em oculto. Se fazes estas coisas, manifesta-te ao mundo. Pois nem mesmo os seus irmãos criam nele” (Jo 7.3-5).

As lutas familiares se intensificaram com a morte de José e com a recusa de Jesus em assumir o papel tradicional que era esperado dele. Seus irmãos o viam como um simples “magico” em busca de fama e a família se desestruturou a tal ponto que, na cruz, o Senhor deixou sua mãe aos cuidados de João.

Entretanto, parece que a história acaba bem: Paulo diz que Tiago era irmão de Jesus (Gl 1.19), e que foi convertido pelo próprio Jesus após ressuscitar (1Co 15.7), embora ele mesmo apresente-se apenas como “servo de Deus e do Senhor Jesus”.

Judas – o outro irmão de Jesus - também se apresenta como “servo de Jesus Cristo e irmão de Tiago”. Quanto a José e a Simão, os outros irmãos nomeados por Mateus e Marcos, a Bíblia nada fala sobre eles muito menos sobre as irmãs.

Mas a melhor de todas as notícias é que ele sabe, por experiência própria, o que é desentendimento familiar. E hoje podemos compreender melhor a afirmação bíblica: “Porque não temos sumo sacerdote que não possa compadecer-se das nossas fraquezas; antes, foi ele tentado em todas as coisas, à nossa semelhança, mas sem pecado. Acheguemo-nos, portanto, confiadamente, junto ao trono da graça, a fim de recebermos misericórdia e acharmos graça para socorro em ocasião oportuna” (Hb 4.15).

domingo, 2 de janeiro de 2011

Aperfeiçoado (2ª Parte)

Hoje, domingo, tradicionalmente relembramos o dia da circuncisão do Senhor, e Lucas a descreve atestando assim sua participação neste sacramento da Antiga Aliança: “Completados oito dias para ser circuncidado o menino, deram-lhe o nome de JESUS, como lhe chamara o anjo, antes de ser concebido” (Lc 2.21). Porém, Lucas dá mais ênfase a um acontecimento posterior: Seus pais o perderam em uma peregrinação à Jerusalém.

Todo judeu devia comparecer a uma das três grandes festas anuais: Páscoa, Pentecostes ou Tabernáculos e Lucas diz: “anualmente iam seus pais a Jerusalém, para a Festa da Páscoa. Quando ele atingiu os doze anos, subiram a Jerusalém, segundo o costume da festa.” (Lc 2.41-42).

No sabath imediatamente posterior à data em que o rapaz fazia 13 anos e um dia, lhe era - e ainda é - concedido o privilégio de ler, na sinagoga, a Torah (o que nós protestantes chamamos de Pentatêuco). Quando isso acontecia, aquele adolescente passava a ser considerado um “Filho do Mandamento” (em hebraico um Bar Mitzvah).

Ao fim da leitura o pai erguia os braços e dizia “Bendito és tu Senhor do céu e da terra que tiraste de mim a responsabilidade deste menino”. A partir de então o garoto já era considerado homem e tinha quase todos os direitos e deveres de um adulto, especialmente de compor o miniam (quórum de 10 pessoas necessário a uma reunião judaica).

Então, era comum o pai levar seu filho às páscoas precedentes para que ele se acostumasse. Provavelmente foi o que aconteceu a Jesus.

As conversas que com outros garotos devem ter atraído a atenção de rabinos que buscavam alunos e ele logo se envolveu em debates com rabinos doutos na lei. Enquanto isso seus pais voltavam supondo que ele estivesse com amigos.

Não é difícil imaginar o desespero de Maria ao perceber sua falta. Primeiro procurou entre “os parentes e conhecidos; e não o tendo encontrado voltaram a Jerusalém”. Foi a primeira vez em que Maria o perdeu por três dias.

Encontraram-no assentado no meio dos rabinos doutos na Lei ouvindo, interrogando, respondendo e causando admiração por sua inteligência. A admiração, causada também nos pais, foi superada pela indignação de Maria: - Por que fizeste assim conosco? Teu pai e eu, aflitos estávamos a tua procura.

E Jesus mostrou que já tinha conhecimento de quem era e da missão que tinha, pois refere-se, na frente de seu pai José, ao outro Pai: - Por que me procuráveis? Não sabíeis que me cumpria estar na casa de meu Pai?

Lucas encerra este episódio - que certamente ouviu de Maria - com as seguintes palavras: “Não compreenderam, porém, as palavras que lhes dissera. E desceu com eles para Nazaré; e era-lhes submisso. Sua mãe, porém, guardava todas estas coisas no coração. E crescia Jesus em sabedoria, estatura e graça, diante de Deus e dos homens” (2.50-52). Esta é a última vez que ouvimos falar de José.

José deve ter vivido tempo suficiente para ensinar-lhe o ofício de construtor (como eu prefiro traduzir tektonos), mas tenho a impressão de que, à exemplo do que ocorreu na cruz - quando Jesus cortou seus vínculos filiais com Maria entregando-a aos cuidados de João - os laços de paternidade humana com José foram quebrados nessa ocasião. Sendo essa uma das razões para Lucas narrar tal episódio, já que o Bar Mitzvah de Jesus seria um ou dois anos depois.

Quando me perguntam por que os Evangelhos deixam lacunas tão grandes na biografia de Jesus, geralmente eu respondo: por que a vida dele foi normal. Tirando esses pequenos episódios foi corriqueira (aquela que todos vivemos e que aperfeiçoa nosso caráter) ao ponto de, mais tarde, espantar seus vizinhos: “Não é este o filho do carpinteiro? Não se chama sua mãe Maria, e seus irmãos, Tiago, José, Simão e Judas? Não vivem entre nós todas as suas irmãs? Donde lhe vem, pois, tudo isto?” (Mt 13.55-56).