Eis como esquadrinhei minha memória em tua procura, Senhor: não me foi possível encontrar-te fora dela.Dentre as muitas lembranças que minha memória guarda as mais antigas são cheiros, sons e sabores. Acho que a mais antiga de todas é o cheiro de minha mãe. Era o último perfume do dia e o primeiro da manhã (as mães de outrora se perfumavam docemente com pó de arroz). Como cheirava bem! O perfume de minha mãe me inspirava segurança e anunciava sua presença protetora. Nunca o esquecerei.
Nada encontrei de ti que não fosse lembrança, e nunca me esqueci de ti desde que te conheci.
Onde encontrei a verdade, aí encontrei a meu Deus, que é a própria verdade; e desde que aprendi a conhecer a verdade, nunca mais a esqueci.
Por isso, desde que te conheço, permaneces em minha memória.
É lá que te encontro quando me lembro de ti e quando sou feliz em ti.
Estas são as santas delicias que me deste em tua misericórdia, olhando para minha pobreza.
(Santo Agostinho)
Nunca me esquecerei também do sabor e do cheiro das mangas maduras, dos melões (parece que os melões de então eram mais cheirosos), das tangerinas ou do café com cuscuz pela manhã.
E o canto dos sabiás, das rolinhas e dos guriatãs? A algazarra dos bem-te-vis e das maritacas? As cantigas de roda (o cravo brigou com a rosa...) e os saraus na varanda? Há como esquecer? A beleza coloria os ouvidos e pacificava a alma.
Lembro-me da claridade das manhãs ensolaradas e da escuridão das noites estreladas. Do lusco-fusco do fogão de lenha na cozinha, fatiando a penumbra dos dias chuvosos, repleta de aromas do almoço, aguardado ao gosto de biscoitos de polvilho.
Essas e muitas outras lembranças, que me transportam ao passado (um passado de alegrias e de segurança), residem em minha memória. Foram colocadas lá pela experiência e atingiram o local mais nobre de minha personalidade, pois parte do que sou hoje é o resultado delas.
Porém, como Santo Agostinho, tenho certeza de que é em minha memória que residem também as coisas da fé. É lá, mas é lá que as encontro.
Lá estão impressões criadas pela certeza do que não vi, mas que, com forte convicção, aguardo. Aguardo e desejo. Não é como a memória do passado, que nasceu das experiências da infância. Nasce do porvir. Nasce de uma espécie de futuro realizado, de tão palpáveis que são.
Na memória do passado a maioria das imagens é de meus pais e de outros queridos. Na memória do futuro - daquele futuro realizado - há também sons, cheiros, e gostos, e muitas imagens. Imagens amplas, claras, espaçosas e iluminadas como pastos verdejantes. Vivas, brilhantes, solenes e calmas como águas tranqüilas.
Sons claros, límpidos, amplos, majestosos como o som de muitas águas, ao mesmo tempo íntimos como um cicio suave. Plenos, qual som de um órgão de tubos. Bem definidos como o som de uma flauta.
Os cheiros são aromas suaves e vão do doce ao acre. Matizados como um arco-íris ou como os sabores de uma salada de frutas. Surpreendentes como o sabor de um pedaço de mamão bem maduro sobre o arroz com feijão fumegante.
Nas memórias do futuro - daquele futuro realizado - encontro meu pai, minha mãe e muitos outros queridos. E, como se fosse um dia ensolarado, depois de uma chuva de verão, em que o ar lavado e mais fino faz com que tudo pareça mais claro, a fé torna tais imagens cada vez mais vívidas, enquanto as impressões do passado se esmaecem qual fotografia.
Essas e muitas outras lembranças, que me transportam ao futuro - pleno de esperanças e alegrias - também residem em minha memória. Foram colocadas lá pelas Sagradas Escrituras e são vivificadas pelo Espírito Santo. Completam o que sou e apontam para o que serei. Não deixam saudades. Ao contrário: aumentam as esperanças e me transportam ao futuro. A um futuro de alegrias e de segurança.
2 comentários:
Rev, Que maravilhoso texto, onde podemos refletir sobre as experiências do passado vivido e do futuro, que com certeza, viveremos com nosso Salvado Jesus Cristo.
Que Deus continue a abençoá-lo
Meu caro Rev. Folton
Meu pai faz um trocadilho para se referenciar numa pequena expressão sobre este sentimento que tens quanto ao futuro, e que ele também tem.
Ele chama isto de '"saudade" do céu'...
Grande abraço!
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