sábado, 27 de março de 2010

A estrada de Jerusalém a Jericó

Na estrada sinuosa e íngreme, que liga Jerusalém a Jericó, diversas pessoas devem ter sido assaltadas com prejuízo até de suas próprias vidas. A parábola do Bom Samaritano foi entendida de pronto, indicando que sua periculosidade era conhecida.

Era uma estrada muito inclinada: descia mil metros em vinte e quatro quilômetros.

Jericó é, até hoje, o local habitado de mais baixa altitude do planeta: cerca de duzentos e cinqüenta metros abaixo do nível do Mediterrâneo. Situa-se em uma planície ao lado do Jordão, próximo ao Mar Morto, e seu clima é razoavelmente quente. Herodes possuía um palácio lá para fugir do frio de Jerusalém, que fica na região montanhosa a uns oitocentos metros acima do nível do Mediterrâneo.

Dois mundos diferentes ligados por essa estrada. Jerusalém estabelecida para adoração do Senhor desde os tempos de Melquisedeque e Jericó fundada como altar de adoração a lua.

Essa foi a estrada que Jesus usou para chegar a Jerusalém onde seria crucificado. Parou em seu trecho final. Em Betânia. E ali hospedou-se na casa de seus amigos, Lázaro, Maria e Marta.

Não se sabe ao certo quantos dias ele ficou lá, mas quando saiu, tomou a direção de Jerusalém. Pouco mais a frente, na altura de Betfagé, deu instruções a seus discípulos sobre o jumentinho que emprestariam.

No trecho final, pouco depois das plantações de figos, ainda na região de Betfagé, foi que as multidões de peregrinos, que também subiam a Jerusalém para celebrar a páscoa, o encontraram e o aclamaram. Segundo João, alguns o tinham visto ressuscitar a Lázaro e ainda estavam maravilhados.

Quando a estrada termina sua ascensão em uma passagem por uma das montanhas que cercam Jerusalém, perto do Monte das Oliveiras, Jesus viu mais do que a cidade em si. Viu seu futuro. E pela segunda e última vez é dito que ele chorou: “Quando ia chegando, vendo a cidade, chorou e dizia: Ah! Se conheceras por ti mesma, ainda hoje, o que é devido à paz! Mas isto está agora oculto aos teus olhos. Pois sobre ti virão dias em que os teus inimigos te cercarão de trincheiras e, por todos os lados, te apertarão o cerco; e te arrasarão e aos teus filhos dentro de ti; não deixarão em ti pedra sobre pedra, porque não reconheceste a oportunidade da tua visitação” (Lc 19.41-44).

Chorou antes por seu amigo Lázaro e agora chora por Jerusalém.

No ano setenta, a mesma estrada, como as demais estradas que chegam a Jerusalém por todos os lados, ficaram cheias. Não de viajantes, mas de soldados romanos. Jerusalém foi sitiada e arrasada a ponto de não ficar pedra sobre pedra, pois não havia reconhecido seu tempo oportuno.

Mas afinal, como se reconhecer o “tempo oportuno”? Há séculos todos os Judeus cantavam o que hoje chamamos de Salmo 95 exortando-se mutuamente: “Hoje, se ouvirdes a sua voz, não endureçais o coração”. O tempo oportuno é hoje!

Atendamos nós também a exortação.

sábado, 13 de março de 2010

O cavalo de Saulo

Desde seminarista observo um fenômeno que, por falta de um nome melhor, chamo de “O cavalo de Saulo”.

Conhecemos o relato da conversão de Saulo. Como ele encontrou Jesus no caminho de Damasco. Apesar de ser uma narrativa simples a maioria vê nela um cavalo. Provavelmente Paulo estivesse montado, porém o texto não diz.

O mesmo ocorre com o beijo de Judas. Garanto que em todos os filme, peças, ou apresentações de classe de crianças que você já viu, Judas, ao trair Jesus, beija seu rosto. Entretanto é mais provável que, como discípulo, ele tenha beijado a mão. Veja os Evangelhos. Nenhum diz que ele beijou o rosto.

Esse fenômeno está presente também - com pequenas variações - em outros textos. Veja o caso da fé que move montanhas.

Marcos nos informa que Pedro admirou-se da figueira ter secado e Jesus disse: “Tende fé em Deus; porque em verdade vos afirmo que, se alguém disser a este monte: Ergue-te e lança-te no mar, e não duvidar no seu coração, mas crer que se fará o que diz, assim será com ele” (Mc 11.22-23).

Pois bem. O que é que faz alguém entender que esta promessa (de mover montanhas pela fé) foi dada a todas as pessoas de todas as épocas? Acaso o texto não é claro? Jesus está falando com quem? Não é com seus discípulos? Com que direito posso me apropriar hoje de uma promessa feita a outros, há dois mil anos, em uma circunstância completamente diferente?

E assim, muitos textos podem ser mal interpretados. Fui pastor de uma senhora que ficou zangada comigo ao ponto de sair da Igreja por eu ter dito que o Salmo 91.7 (Caiam mil ao teu lado, e dez mil, à tua direita; tu não serás atingido) era uma promessa feita a Jesus. Ela cria que o versículo lhe dava um “salvo conduto” contra balas perdidas.

Porém, o texto em que este fenômeno tem se mostrado mais danoso é o capítulo dezesseis do Evangelho de Marcos: a promessa de acompanhamento de sinais aos que cressem.

Uma leitura dos versículos 17 e 18 isoladamente, dá a impressão de que foi prometido a todos os crentes a capacidade de, em nome de Jesus, expelir demônios, falar novas línguas, pegar em serpentes, imunidade a venenos e poder para curar doentes com a imposição das mãos.

Os três primeiros versículos narram como Maria Madalena avisou aos discípulos da ressurreição de Jesus e como eles não creram. Os dois versículos seguintes contam como os que iam para Emaús avisaram também que Jesus lhes aparecera ressuscitado e novamente eles não creram.

Finalmente os versículos 14 a 18, narram como Jesus apareceu-lhes pessoalmente. Censurou-lhes por não terem acreditado em Madalena e nos outros, e mandou-lhes ir pelo mundo afora pregando o Evangelho a toda criatura. E garantiu que, aqueles que cressem, seriam credenciados pelos os sinais acima.

Minha pergunta: Como foi que uma promessa dada a um grupo de onze pessoas acabou sendo apropriada pela maioria dos cristãos de hoje? Não sei. Talvez do mesmo modo que a promessa de mover montanhas - dada ao mesmo grupo - tornou-se propriedade de quase todos os cristãos.

Realmente não sei. Mas desconfio que foi por um motivo semelhante ao que levou todos a verem Judas beijar o rosto de Jesus ou Saulo cair de um cavalo.

sábado, 6 de março de 2010

Duas festas

Dentre as muitas ceias dadas a Jesus, duas se destacam: em ambas ele foi ungido. A primeira, na casa do fariseu Simão, quando ele voltava para a Galiléia e a segunda, na casa de Lázaro, após ressuscitá-lo.

O fariseu Simão negou acintosamente a Jesus as cortesias normais da hospitalidade. Queria dar exemplo para todos o imitarem. Os irmãos Maria, Marta e Lázaro queriam apenas agradecer o milagre.

Era de se esperar que Simão recebesse a Jesus à porta de sua casa com um beijo, providenciasse água e toalha para ele se refrescar do calor e oferecesse azeite, que, emoliente, faria bem ao rosto ressecado e aos pés doloridos da caminhada. Mas acintosamente Simão negou essas simples cortesias.

Era de se esperar que os três irmãos recebessem a Jesus com a intimidade usual: que Lázaro conversasse com ele, Maria ficasse, como sempre, atenta ao seu lado, e Marta, prestimosa, se desdobrasse em preparar o que tinham de melhor. Todos fizeram assim. Fizeram com amor não por simples cortesia.

Na casa de Simão uma mulher, anônima, vendo o acinte, não se conteve. Supriu, em muito, tudo o que foi negado. Simão poderia beijar-lhe o rosto, ela beijou-lhe os pés. Simão deveria fornecer água, ela lavou-lhe os pés com suas lágrimas (a mais nobre das águas, que brota das mais profundas emoções). Simão deveria fornecer uma simples toalha, ela enxugou-lhe os pés com seus próprios cabelos. Simão deveria oferecer azeite, mas ela ofereceu o conteúdo precioso do frasquinho que mulheres como ela traziam ao pescoço para refrescar o hálito.

Na casa de Lázaro, Maria, que gostava de quedar-se aos pés de Jesus ouvindo suas palavras, trouxe cerca de trezentos gramas de bálsamo de nardo puro e o derramou nos pés do Senhor, perfumando toda a casa.

Quando o fariseu Simão viu o gesto da mulher, embora ela só tivesse tocado os pés de Jesus, pensou consigo mesmo: - Profeta ele não é. Se fosse saberia que esta mulher é uma prostituta. E na outra ceia, quando Judas viu tanto perfume precioso derramado sobre os pés do Senhor, perguntou: “por que não se usou o dinheiro deste perfume para ajudar os pobres?”

Jesus então saiu em defesa das duas. Mostrou a Simão que ela fez muito mais do que ele deveria ter feito, e isso atestava mais consciência do quanto foi perdoada, ao passo que ele, Simão, sequer se julgava devedor. Também mostrou a Judas que Maria se antecipou para seu sepultamento, pois sempre haverá a quem ajudar, mas nem sempre ele estaria ali.

Aquela que colocou sua vida aos pés do Senhor então ouviu dele: “Vai-te em paz. A tua fé te salvou”. E Maria recebeu de Jesus a garantia de que onde fosse pregado o Evangelho, o que ela fez seria lembrado para sua memória.

Não sabemos o que foi servido nas ceias, pois o que importava era registrar quem era Jesus, e quem era o verdadeiro adorador e o falso.

Dois jantares. Dois propósitos. Duas unções. Dois censores: Um em nome da religião outro em nome dos pobres. Duas mulheres muito diferentes, mas com o mesmo sentimento de gratidão e devoção. Uma só atitude do Senhor Jesus.

Hoje o Senhor Jesus não pode estar fisicamente em sua casa nos momentos de festa, mas sua presença deve orientar a alegria. Não se envergonhe dele. Unja seus pés com o que você tiver de melhor.