sábado, 24 de outubro de 2009

“... sadios na fé” (Tt 2.2)

Dentre as muitas correntes de pensamento e comportamento do evangelicalismo brasileiro, uma me impressiona há muito tempo. Ela diminui e cresce obedecendo a um ritmo que desconheço. Algumas vezes chega a tornar-se quase onipresente nos sermões, publicações e especialmente músicas. Costumo chamá-la (por falta de um nome melhor) de corrente místico/erótica.

Você já deve ter ficado incomodado, ou pelo menos pensativo, com declarações do tipo “estou apaixonado por Jesus”. É a esse tipo de coisa que me refiro.

Não é nova. Tem a idade dos movimentos místicos e, antes do protestantismo se instalar no Brasil, já se manifestava dentro do catolicismo romano.

De modo geral é possível dizer que os pensadores místicos usam esse tipo de expressões para caracterizar seu relacionamento com Deus. Parece que esse apelo erótico decorre da necessidade de se falar sobre um relacionamento mais íntimo com Deus. Como se a fé não bastasse.

Os relacionamentos mundanos, tidos hoje como os mais profundos, são usados como modelo do relacionamento que devemos ter com Jesus (ou para alguém, alardear o quanto se é íntimo dele). Dentro desse contexto é que essas expressões vulgares aparecem. Porém, não há maior incoerência do que fazer isso.

No contexto bíblico, especialmente no Novo Testamento, paixão é a total negação do Fruto do Espírito. Pathos (etimologia grega da palavra paixão, de onde também procede as palavras patologia ou doença) é a negação absoluta da falta de ordem esperada na fé e na prática. Especialmente no culto.

O apóstolo Paulo verificava, mesmo à distância, a “boa ordem” da fé da igreja de Colossos (Cl 2.5). Determinou a igreja de Corinto que se empenhasse por um culto feito com “ordem e decência” (1Co 14.40). Chegou a deixar Tito como seu representante em Creta para colocar “em ordem” o governo das igrejas de lá (Tt 1.5). Ordem é um valor cristão.

Essa tendência “erótica” foi documentada no meio protestante brasileiro desde seu início. O Dr. André Bieller, pensador reformado, fundador da Escola de Sociologia da USP, chega a se queixar, em seu livro “O Protestantismo Brasileiro”, da quantidade de vezes em que nosso hinário fazia referências a sentimentos em lugar da fé. Constantemente a fé era substituída pelo tocar, sentir ou gozar. Por exemplo: “ao sentir-te perto nada temerei”. E se não sentir? Temerá? Então para onde foi a fé?

As figuras bíblicas foram exageradas e levadas as últimas conseqüências. As “Bodas do Cordeiro com a Igreja” tornaram-se um encontro amoroso entre o fiel e Jesus. Na maioria das vezes é o fiel que pede a Jesus seu toque, carinho e palavras amorosas. O fiel é o sedento de amor e Jesus é o amante que precisa ser chamado e lembrado da carência do fiel ou dos fiéis. Neste caso não se hesita em pedir “incendeia a tua noiva”.

É um relacionamento tão complexo que às vezes se inverte: O fiel possui a Jesus ou Deus e aparecem declarações como “Deus é tão fofinho”. Ou a do bispo: “Deus é uma coisinha quentinha e gostosinha”.

Os ensinos bíblicos sobre os perigos de se encontrar face a face com Deus são postos de lado e a palavra de ordem é aproveitar que, como Jesus já pagou tudo, só nos resta celebrar carnavalescamente ou “gozar a intimidade no jardim”.

Não relevo a alegria que a alma do cristão desfruta na bondade do Senhor. Entretanto, deploro o uso de imagens eróticas, as vezes de mau gosto ou mesmo pornográficas, para descrever esse bendito sentimento.

Há que vigiar nosso vocabulário, nossos cânticos e o culto que oferecemos a Deus. Há que corrigir nossos hinos. Mas primeiramente há que pensar em nossos valores e examinar se não estamos trazendo valores mundanos para dentro da Igreja.

Um comentário:

Milton Jr. disse...

Folton,
Estamos, de fato, vivendo um tempo em que as pessoas acham que se não houver "sensações" o Senhor não está abençoando.

Na ânsia por experiências e mais "intimidade" o povo evangélico tem feito o mesmo que Filipe que, mesmo diante da Palavra de Jesus: "Se vós me tivésseis conhecido, conheceríeis também a meu Pai. Desde agora o conheceis e o tendes visto", pediu uma experiência: "Senhor, mostra-nos o Pai, e isso nos basta".
Cabe a eles a mesma repreensão que o Senhor fez a Filipe.

Parabéns pelo precioso texto.