sexta-feira, 30 de abril de 2010

Memórias do passado e do futuro

Eis como esquadrinhei minha memória em tua procura, Senhor: não me foi possível encontrar-te fora dela.
Nada encontrei de ti que não fosse lembrança, e nunca me esqueci de ti desde que te conheci.
Onde encontrei a verdade, aí encontrei a meu Deus, que é a própria verdade;
e desde que aprendi a conhecer a verdade, nunca mais a esqueci.
Por isso, desde que te conheço, permaneces em minha memória.
É lá que te encontro quando me lembro de ti e quando sou feliz em ti.

Estas são as santas delicias que me deste em tua misericórdia, olhando para minha pobreza.
(Santo Agostinho)

Dentre as muitas lembranças que minha memória guarda as mais antigas são cheiros, sons e sabores. Acho que a mais antiga de todas é o cheiro de minha mãe. Era o último perfume do dia e o primeiro da manhã (as mães de outrora se perfumavam docemente com pó de arroz). Como cheirava bem! O perfume de minha mãe me inspirava segurança e anunciava sua presença protetora. Nunca o esquecerei.

Nunca me esquecerei também do sabor e do cheiro das mangas maduras, dos melões (parece que os melões de então eram mais cheirosos), das tangerinas ou do café com cuscuz pela manhã.

E o canto dos sabiás, das rolinhas e dos guriatãs? A algazarra dos bem-te-vis e das maritacas? As cantigas de roda (o cravo brigou com a rosa...) e os saraus na varanda? Há como esquecer? A beleza coloria os ouvidos e pacificava a alma.

Lembro-me da claridade das manhãs ensolaradas e da escuridão das noites estreladas. Do lusco-fusco do fogão de lenha na cozinha, fatiando a penumbra dos dias chuvosos, repleta de aromas do almoço, aguardado ao gosto de biscoitos de polvilho.

Essas e muitas outras lembranças, que me transportam ao passado (um passado de alegrias e de segurança), residem em minha memória. Foram colocadas lá pela experiência e atingiram o local mais nobre de minha personalidade, pois parte do que sou hoje é o resultado delas.

Porém, como Santo Agostinho, tenho certeza de que é em minha memória que residem também as coisas da fé. É lá, mas é lá que as encontro.

Lá estão impressões criadas pela certeza do que não vi, mas que, com forte convicção, aguardo. Aguardo e desejo. Não é como a memória do passado, que nasceu das experiências da infância. Nasce do porvir. Nasce de uma espécie de futuro realizado, de tão palpáveis que são.

Na memória do passado a maioria das imagens é de meus pais e de outros queridos. Na memória do futuro - daquele futuro realizado - há também sons, cheiros, e gostos, e muitas imagens. Imagens amplas, claras, espaçosas e iluminadas como pastos verdejantes. Vivas, brilhantes, solenes e calmas como águas tranqüilas.
Sons claros, límpidos, amplos, majestosos como o som de muitas águas, ao mesmo tempo íntimos como um cicio suave. Plenos, qual som de um órgão de tubos. Bem definidos como o som de uma flauta.

Os cheiros são aromas suaves e vão do doce ao acre. Matizados como um arco-íris ou como os sabores de uma salada de frutas. Surpreendentes como o sabor de um pedaço de mamão bem maduro sobre o arroz com feijão fumegante.

Nas memórias do futuro - daquele futuro realizado - encontro meu pai, minha mãe e muitos outros queridos. E, como se fosse um dia ensolarado, depois de uma chuva de verão, em que o ar lavado e mais fino faz com que tudo pareça mais claro, a fé torna tais imagens cada vez mais vívidas, enquanto as impressões do passado se esmaecem qual fotografia.

Essas e muitas outras lembranças, que me transportam ao futuro - pleno de esperanças e alegrias - também residem em minha memória. Foram colocadas lá pelas Sagradas Escrituras e são vivificadas pelo Espírito Santo. Completam o que sou e apontam para o que serei. Não deixam saudades. Ao contrário: aumentam as esperanças e me transportam ao futuro. A um futuro de alegrias e de segurança.

sábado, 24 de abril de 2010

Palavras irresponsáveis e falsidade

Há um ou dois anos, ouvindo uma palestra sobre a vida no lar, tive meu primeiro contato com um novo sentido em que a palavra “profecia” está sendo usado. A palestrante disse: "Na minha casa acontece esse tipo de problema também. E eu resolvo com oração. Mas tem dias em que parece que tudo dá errado. Então, nesses dias, eu “rodo a baiana” e profetizo: Em nome de Jesus, sai prá lá espírito de confusão"!

Poucos dias atrás recebi um pequeno filme de uma “cantora gospel” de renome, em que ela dizia já ter ido a Barretos levando o Apóstolo Fulano, e, segurando na ferradura, profetizou que Jesus é o dono daquela arena.

Quando ouvi a primeira declaração, perguntei a amigos e eles me disseram que era apenas um modo de falar. Entretanto, depois dessa outra concluí que este modo de falar está enraizado em uma visão de mundo completamente diferente do que as Escrituras nos mostram.

O que as duas frases possuem em comum é a palavra profecia. Na primeira frase o que é chamado de profecia é uma espécie de esconjuração. A frase equivale a “sai daqui coisa ruim”. A única diferença é que quem a proferiu usou o nome do Senhor Jesus para tornar essa esconjuração mais aceitável aos ouvidos evangélicos. Tanto é que cometeu um lapsus linguæ: “rodo a baiana”.

Na segunda frase a tal “cantora gospel” assumiu um papel, muito semelhante aos profetas da velha aliança, inclusive o “pegar na ferradura”, pois muitos deles intensificaram suas palavras proféticas com exemplos, gestos e objetos.

As duas frases, além de banalizar um termo tão sublime como profecia, pecam por falsidade.

São profecias falsas sim. Na primeira frase a expressão “nesses dias” deixa claro que ela foi “profetizada” repetidas vezes. Neste caso específico, embora a palestrante seja academicamente qualificada para não fazê-lo, provavelmente estejamos diante de um mau uso do termo “profetizar”. Pois, por definição bíblica, a verdadeira profecia se cumpre. Se isso não acontecesse o profeta deveria ser morto. Veja Deuteronômio 18.19-22.

Na segunda declaração a cantora já profetizou que o dono daquela arena é Jesus. De fato: Jesus é o dono daquela arena, como é dono de todas as coisas. Ou seja, ela profetizou que acontecerá algo que já aconteceu.

Se alguém disser que ela se expressou mal, e quis dizer apenas que a arena está sob o domínio do usurpador, a torna culpada de pecado maior (como se pudesse haver pecado maior), pois afirmou ter profetizado juntamente com um apóstolo.

Os verdadeiros Apóstolos tinham autoridade delegada diretamente de Deus para fazer coisas materiais com conseqüências eternas. Lembre-se de: “O que ligares na terra será ligado no céu” (Mt 18.18). Também de: “...Himeneu e Alexandre, os quais entreguei a Satanás, para serem castigados, a fim de não mais blasfemarem” (1Tm 1.20).

Não se esqueça de que os apóstolos possuíam tal poder: “Não possuo nem prata nem ouro, mas o que tenho, isso te dou: em nome de Jesus Cristo, o Nazareno, anda!” (At 3.6).

Um Apóstolo estava no primeiro grau de autoridade (1Co 12.28). O que um Apóstolo falava acontecia. Entretanto, que eu saiba, até hoje não houve qualquer modificação na festa de Barretos. Concluo então que além da falsa profetisa apareceu também um falso apóstolo.

Somos constantemente alertados pelas Escrituras contra os falsos apóstolos e profetas, mas parece que eles estão proliferando. Talvez até tenhamos culpa, pois banalizamos o significado das palavras. Especialmente o significado do que é um profeta ou um apóstolo. Usamos com irresponsabilidade essas palavras, seus significados e suas funções. As conseqüências disso não são boas: Um dos verdadeiros profetas, nos advertindo contra a irresponsabilidade, disse: “... semeiam ventos e colherão tempestades” (Os 8.7).

sábado, 17 de abril de 2010

Vida

Embora não saibamos exatamente como definir o que é vida todos nós sabemos a que estamos nos referindo quando usamos esta palavra. Discordo, entretanto de quem diz que viver é a capacidade de existir autonomamente, pois as pedras existem e não estão vivas, e nós, que estamos vivos, dependemos do ar, do sol, dos alimentos. Ou seja: dependemos de tantas outras coisas, que podemos ser tudo, menos autônomos.

Aliás, essa é uma característica da vida: Mais do que dependente, ela é, por assim dizer, extremamente egocêntrica. Qual máquina, ela consome seus combustíveis a qualquer preço: cegamente. Não se pode convencer um ente vivo a gastar menos oxigênio, e o limite mínimo de suas necessidades calóricas é bem definido.

Fazemos parte de uma “cadeia alimentar”. Nos alimentamos e servimos de alimento. Comemos vegetais ou animais, e através deles recebemos os minerais que não podemos comer in natura e alimentaremos a muitos após nossa morte.

Fazemos parte de um tecido social mais ou menos semelhante. Jamais podemos afirmar que não dependemos de ninguém, ou que ninguém depende de nós. Dependemos do seio de nossas mães, da casa de nossos pais e do amparo de nossos filhos. Do seio recebemos o alimento e o conforto. Da casa, o conforto e a orientação para o futuro. Dos filhos a honra e o consolo de uma vida completa. Mas não se esqueça: os papéis se invertem. Começamos a vida como filhos e a terminamos como pais.

Ao adquirir nossa natureza o Senhor Jesus sujeitou-se a essa “roda”. Como qualquer um de nós dependeu de sua mãe e de seu pai e apesar de sua inteligência precoce, atestada pelos doutores de Jerusalém, aprendeu com seus irmãos e amigos também. O escritor da Carta aos Hebreus nos diz que ele aprendeu aquilo que nunca teve de fazer: obedecer. Não teve filhos biológicos, mas deu sua vida pelos filhos espirituais, rompendo assim o círculo em que, no fim da vida, os pais passam a depender dos filhos.

O mais precioso é saber que ele mantém nossa natureza e que nunca se apartará dela. Entretanto ele a corrigiu. Ela voltou a ser o que deveria ter sido se nossos pais não pecassem. A marca do “egocentrismo” de que falei - da vida comportar-se como máquina que devora seu combustível - para ele já é coisa do passado, pois o princípio vital não é mais “carne ou sangue”, mas o poder de Deus.

Os filhos de Jesus, aqueles com os quais ele comparece diante do Pai (Hb 1.13), “não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus” (Jo 1.13).

E serão cumpridas as palavras do Profeta Zacarias:

“Se alguém lhe disser: Que feridas são essas nas tuas mãos? responderá ele: São as feridas com que fui ferido na casa dos meus amigos.

Desperta, ó espada, contra o meu pastor e contra o homem que é o meu companheiro, diz o SENHOR dos Exércitos; fere o pastor, e as ovelhas ficarão dispersas; mas volverei a mão para os pequeninos. Em toda a terra, diz o SENHOR, dois terços dela serão eliminados e perecerão; mas a terceira parte restará nela. Farei passar a terceira parte pelo fogo, e a purificarei como se purifica a prata, e a provarei como se prova o ouro; ela invocará o meu nome, e eu a ouvirei; direi: é meu povo, e ela dirá: O SENHOR é meu Deus (Zc 13.6-9).

quinta-feira, 1 de abril de 2010

A cruz de Jesus e a nossa

Embora não saibamos ao certo se a cruz que o Senhor Jesus carregou já estava montada ou era apenas a trave horizontal, temos certeza de que era pesada.

Jesus era carpinteiro e, apesar de usar boa parte das ferramentas de um carpinteiro de hoje, não contava com as mesmas facilidades. Se muito, encontrava um madeireiro. Porém, é mais provável que tivesse de derrubar e trazer a árvore.

Embora até pudesse confeccionar móveis o carpinteiro de então trabalhava mais com a construção de casas. Era quem escolhia as vigas de sustentação da cobertura, que geralmente era feita de barro sobre uma estrutura muito parecida com a que hoje usamos para o estuque. Assentava as vergas e os umbrais das portas e das janelas.

A palavra carpinteiro aparece no Evangelho de Mateus, referindo-se a profissão de seu pai José e no Evangelho de Marcos referindo-se a sua própria profissão. Em ambos traduz a palavra grega tekton, de onde vem nossa palavra arquiteto. Ou seja: Construtor. E isso se coaduna bem com sua declaração “vou preparar-vos lugar”.

O Verbo de Deus, sem cuja participação nada foi feito, ao tomar nossa natureza, toma também a profissão de construtor. E, voltando à casa do Pai, deixa-nos sua promessa de continuar construindo. Agora, a nossa casa.

Não devemos imaginar-lhe com o porte quase feminino retratado na maioria dos filmes. Ele era tão musculoso quanto os trabalhadores braçais de então. Isaías falando dele disse que ele era: “homem de dores e que sabe o que é padecer”.

Homem forte e acostumado a esforços, entretanto não conseguiu carregar a cruz que lhe foi posta aos ombros. Pelo menos não conseguia carregá-la com a velocidade que os soldados romanos impunham e foi ajudado por Simão Cireneu. Por que?

Desde a noite anterior ele estava sofrendo de muitas maneiras. Primeiro a falta de amigos que não conseguiam permanecer acordados. Depois as traições: o beijo de Judas, a negação de Pedro e a sublevação daqueles que deveriam zelar pela religião: seus levitas, armados de varas e porretes, o prenderam e espancaram. Seus sacerdotes e os demais membros do Sinédrio montaram um julgamento fraudado. Condenaram-no e o entregaram nas mãos de ímpios.

E o que dizer da tortura e das zombarias?

Mesmo que fosse apenas a parte horizontal da cruz, era pesada. Tão pesada que ele, acostumado a trabalhar com vigas, vergas, traves e aduelas, precisou da ajuda de Simão.

Não podemos esquecer também que junto com aquele pedaço de madeira, que pesava sobre as costas do Senhor, pesava também os nossos pecados. E este peso Simão, mesmo que fosse muito forte, não conseguiria agüentar. Simão levou a parte leve da cruz.

Apesar de não ser como a que Simão ajudou a carregar nem ter o mesmo propósito da que somente Jesus carregou, cada um de nós recebeu também uma cruz. Elas não salvarão ninguém, nem a nós mesmos. Mas nos manterão crucificados para o mundo e vivos para Deus.

Elas atestam quem é o nosso Senhor: “os que são de Cristo Jesus crucificaram a carne, com as suas paixões e concupiscências” (Gálatas 5.24).